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Cidadania evangélica

A ideia desse texto é a de tentar elucidar - ao menos parcialmente -  a adesão, em larga escala, de setores populares e da pequena classe média

5 mins de leitura

em 23 de fev de 2024, às 09h31

Foto: Ilustrativa/Pixabay

Por João Gualberto

A ideia desse texto é a de tentar elucidar – ao menos parcialmente –  a adesão, em larga escala, de setores populares e da pequena classe média, digamos assim, aos movimentos de direita e conservadores no Brasil. O argumento aqui utilizado é o de que essa adesão se dá, em parte, pela busca da inclusão na sociedade, pela via da prosperidade. Esse é um caminho proposto pelas igrejas surgidas na Reforma Protestante, há muitos séculos, forte base dos movimentos conservadores, e amplificada pelo neopentecostalismo com a teologia da prosperidade.

A motivação conservadora, aliada à pauta da prosperidade familiar, estaria assim na base da ascensão ao consumo de bens e serviços, mesmo os básicos como educação e saúde. O acesso a esses elementos da cidadania, que o estado não é capaz de dar, só é possível para os brasileiros com capacidade de compra.

Retornemos ao passado para entendermos o trajeto histórico de tudo isso. No Brasil, nunca construímos uma verdadeira cidadania como fizeram outras sociedades. O conceito social de cidadão, oriundo da revolução francesa, nunca chegou, de fato, entre nós. Temos razões históricas que explicam esse fato. Para começar, nunca podemos esquecer de dois elementos fundamentais presentes em nosso processo de colonização pelo mundo europeu: o catolicismo conservador e o papel da escravidão.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que a chegada do colonizador a nosso país é da mesma época da Reforma Protestante. Somos produto da chamada contrarreforma, que acentuou, na igreja católica, os elementos tão criticados por Lutero e por Calvino. Os europeus que atravessaram o Atlântico trouxeram consigo um catolicismo impregnado pelas chamas do Santo Ofício.

A Inquisição formou mentes e corações. Somos, desde sempre, uma sociedade marcada pelo imaginário de um cristianismo duro. Era religião oficial, obrigatória e bancada pelo Estado. Governo e igreja eram dois braços do mesmo corpo. Dois membros que asfixiavam qualquer proposta de autonomia vinda da sociedade. Não tivemos a possibilidade de criar, nesse período histórico, instituições que dessem suporte a um avanço intelectual, educacional ou que apreciasse qualquer vestígio de liberdade. Não tivemos os berços de uma cidadania plena.

Além disso, éramos – e em grande parte ainda somos – uma sociedade altamente hierarquizada, tendo como base o que as elites dominantes chamavam de elemento servil: o trabalho desumano e desumanizante dos escravizados. Primeiro, foram os indígenas e depois os africanos – em boa parte do tempo, os dois. Enquanto os restos do regime aristocrata lusitano formavam as elites proprietárias e dirigentes, os trabalhadores eram a base da pirâmide sem quaisquer direitos. O povo brasileiro se constituiu assim, nesse imaginário social equivocado da desigualdade natural e naturalizada. Não deve, portanto, nos surpreender o fato de que a herança do período colonial foi uma cidadania de meia-tigela. Um país hierarquizado, feito de poucos que podem muito e muitos que nada podem.

Do ponto de vista das bases materiais para essa hierarquização, foi a concentração da estrutura das propriedades agrícolas que tornou isso possível. Materializou a desigualdade. O latifúndio foi a base da agricultura colonial e permaneceu no Império. As grandes fases da economia agrícola brasileira como a do café, borracha, cana-de-açúcar ou cacau, foram esses latifúndios concentradores de terras e riquezas. Ampliaram desigualdade e não produziram cidadania.

A escravidão em si é uma tragédia. A chamada escravidão moderna construída pela diáspora africana é uma das maiores crueldades já existentes na história do mundo. Suas marcas estão por todo o lado no Brasil. Basta lembrar o racismo. Além de obrigarem a todos o trabalho sem dignidade, sem renda, sem condições mínimas de saúde, ainda criaram a ideia de que os escravizados eram inferiores – que pertenciam a uma raça, conceito em si equivocado, merecedora de chibatadas e torturas.

O racismo ainda hoje existente é uma herança da construção da nossa sociedade. Exilou os trabalhadores em um lugar de sub cidadãos. Mesmo hoje ele está presente entre nós. Mas não é o único elemento da formatação dessa nossa cidadania de meia-tigela. O machismo também exila as mulheres a um espaço muito restrito. Historicamente não tiveram outro lugar que não fosse o de mães e esposas. O espaço público sempre foi privilégio masculino.

Fiquemos nesses elementos. Hoje, entretanto, há uma luta clara para vencer essa distância entre quem pode e quem não pode. A religião pode ser uma delas. Quando uma pessoa opta, por exemplo, pela religiosidade, cuja base é a ideia de prosperidade, de que o seu Deus colocou os recursos no mundo para serem usados por todos, está dando uma resposta a essa asfixia histórica e a incapacidade do Estado em prover esses serviços. Concretamente, dentro do marco conservador e de direita, em muitos casos, a busca de igualdade está na base da ideia da prosperidade. É uma espécie de Reforma Protestante à brasileira o que estamos vendo.

Um cidadão consumidor pode estar surgindo em meio a um certo paradoxo do raciocínio ideológico tradicional. Há muito que o pensamento racional, nos modelos convencionais de uma  ciência clássica, deixou de dar respostas às nossas questões sociais. Isso pode explicar muita coisa.

** João Gualberto é pesquisador e professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA), e já foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018.

As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM

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