A política como espetáculo

Desde pelo menos os anos 1980, sociólogos franceses como Alain Touraine e Michel Mafessoli trabalham a ideia de que na época em que vivemos

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em 26 de abr de 2025, às 09h00

Foto: Ilustrativa/Pixabay
Foto: Ilustrativa/Pixabay

Por João Gualberto

Desde pelo menos os anos 1980, sociólogos franceses como Alain Touraine e Michel Mafessoli trabalham a ideia de que na época em que vivemos – que desde então Mafessoli chama de pós-modernidade – estamos imersos na sociedade do espetáculo, fato que é hoje muito fácil de ser verificado.

Já nos anos 1960, o filósofo Guy Debord falava do mesmo tema. Todos esses autores têm uma abordagem bastante crítica quanto ao conteúdo que vai sendo substituído pela forma, tornando-nos cada vez mais superficiais como sociedades. Mais do que isso, só quem consegue caminhar pelas superfícies consegue se comunicar com esse mundo cada vez mais raso, onde o aprofundar-se resta inútil.

Na verdade, podemos ver os sinais dessa política espetáculo no alvorecer do século XX na Alemanha de Hitler, que foi o primeiro líder a utilizar de forma massiva e organizada os modernos instrumentos da comunicação à época, como o rádio. Há mesmo um cinema nazista, elemento mais do que importante na campanha de doutrinação ideológica que construiu o Terceiro Reich. Nele se destacam obras como O Triunfo da Verdade, de Leni Riefentahl, pura propaganda do regime.

Por falar em cinema, o documentário Hitler, uma carreira é uma obra importantíssima sobre a imagem pública do dirigente nazista, feito com a colaboração do historiador Joachim Fest, seu biógrafo, com trechos de discursos e dos noticiários cinematográficos da época. Fica muito claro, no filme, como foi construída com detalhes a narrativa que conquistaria não apenas os alemães, mas também boa parte da opinião pública europeia. Foi ela que permitiu o crescimento de uma extrema direita que chegou ao poder em muitos países como Portugal, Espanha e Itália, criando uma legião de colaboradores em outros países com a França, possibilitando a expansão do nazismo. O requinte de detalhes de Hitler, uma carreira permite muito bem compreender por que podemos dizer que o marketing político moderno começa na Alemanha dos anos 1930.

Tudo isso embasa a premissa de que os expedientes para transformar a conquista do poder em um espetáculo e desse modo despolitizar a política não surgiram recentemente, como pode ser pensado; na verdade, eles vieram de épocas pretéritas. No fundo é uma espécie de aggiornamento das práticas de conquista do voto, de expansão das doutrinas ideológicas, de determinado partido ou grupo político, possibilitado pela tecnologia, que foi se transformando. Mesmo países como o Brasil da Era Vargas utilizaram o rádio e inclusive o cinema, em larga escala, para construir uma vasta aceitação popular de seus dirigentes.

Quando a sociologia política começou a tratar da política espetáculo, ela era praticada com vasto apoio da televisão, o meio de comunicação que ganhou o mundo a partir do fim da segunda guerra, ampliando o papel dos velhos palanques das eleições. A televisão brasileira começa logo no início dos anos 1950. Essa ampliação dos palanques deveu-se à capacidade de sedução ampliada pelas tecnologias, sobretudo a das cores. Hoje ela tem uma catapulta gigantesca: as redes sociais.

Eu diria mesmo que a política migrou para as redes sociais, é ali que as pessoas comuns vão se informar no seu cotidiano. É ali, com inúmeros artifícios tecnológicos, que todos podem ampliar suas capacidades de produzir coisas inusitadas. Mais do que isso, é nas redes sociais que os atores políticos brasileiros passaram a produzir suas carreiras. O maior deles, Jair Bolsonaro, não existiria sem as redes sociais. Por meio delas elegeu-se presidente da república sem partido político, sem tempo de televisão, sem uma rede de políticos importantes.

Depois aprendeu a sobreviver nessas condições, tanto que, mesmo eleito presidente, usou e abusou de uma estratégia de projetar-se como um homem simples. Sua fala depois da posse foi apoiada em uma mesa improvisada com uma prancha de surfe. Comeu farofa de forma a parecer um brasileiro simples do povo, posou com sandálias quase toscas. Isso todo mundo conhece, porque viu a ópera bufa se desenvolver.

Estamos vendo hoje o ápice da política espetáculo com o personagem Donald Trump, com seu gestual teatral, com sua foto oficial demoníaca e suas palavras chulas, ocupando a mídia o tempo todo, promovendo bizzarices permanentes. Parece que com ele chegamos ao máximo de um tempo marcado pela absoluta ausência de conteúdo e socialização de projetos, tanto que ninguém sabe ao certo onde ele quer chegar. É o tempo dos grandes atores e dos grandes espetáculos.  Mas uma hora o ciclo acaba, pois, como tudo, também se esgotará sua capacidade de produzir resultados.

** João Gualberto é pesquisador e professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA), e já foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018.

As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM

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