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A força da cultura africana

É do grande africanista Alberto Costa e Silva – que foi o ocupante da cadeira número 9 da Academia Brasileira de Letras até 2023, ano da sua morte

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em 20 de set de 2024, às 16h06

Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Por João Gualberto

É do grande africanista Alberto Costa e Silva – que foi o ocupante da cadeira número 9 da Academia Brasileira de Letras até 2023, ano da sua morte, tendo sido seu presidente no início do nosso século – a frase: “É preciso entender os africanos para entender o Brasil”. Intelectual com mais de quarenta obras publicadas, embaixador do Brasil no Benin e na Nigéria, ele teve uma enorme paixão pela cultura daquele continente. Um vício, como dizia. Ele nos estimulava a pensar que a riqueza cultural que encontrou em seus estudos apontava a África como herdeira de uma cultura da mesma dimensão que a Grécia antiga, com os seus inventos sociais.

A riqueza dessa cultura, no entanto, nunca foi valorizada em nossa memória coletiva. Não aprendemos nas escolas que havia tradições culturais sofisticadas entre os africanos que aqui aportaram, sequestrados de suas terras. Nunca nos disseram que os trabalhadores cativos, tratados às chibatadas e submetidos a muita dor, vieram de nações poderosas em seus territórios e que lá muitos eram reis, guerreiros ou sacerdotes respeitados.  Ocultaram-nos também de que regiões da África realmente vieram e quais eram as suas religiões, seus hábitos, suas culturas agrícolas. Tudo o que fomos levados a pensar é que eram povos atrasados, analfabetos e portadores de desejos primários, em um estágio civilizatório inferior ao dos brancos que os escravizaram. Isso era pré-requisito para o racismo, para a teoria que muitos de nós aprendemos e que buscava, dessa forma, justificar a escravidão.

Além disso, Alberto Costa e Silva chamava a atenção para o fato de que o imaginário social brasileiro deve enormes tributos aos povos da África, já que eles são responsáveis não apenas pela cor de nossa pele, mas também pelo nosso jeito de andar, nosso gestual abundante, nosso modo de falar e nossos hábitos alimentares. O respeitado africanista nos ensinou que houve um esforço das nossas elites para reduzir os negros escravizados ao papel de trabalhadores cativos, retirando de todos eles a força de sua cultura. Essa operação de aculturação foi feita para facilitar a construção da narrativa da superioridade dos brancos.

Quando a escravidão terminou, em 1888, no fim do Império, nenhuma política de inclusão foi feita. Imigrantes brancos que chegaram ao Brasil nessa mesma época ganharam suas pequenas propriedades, como aqui mesmo no Espírito Santo. Muitos migrantes internos vindos do Nordeste em épocas de grandes secas também receberam a terra onde lavrar. Mas os negros libertos, não. Eles foram condenados à miséria, a grande maioria sem oportunidade à educação, sem preparo para a economia urbana e sem vontade de permanecer nos locais onde eram supliciados. Desse modo, ficaram sem alternativas. É preciso registrar que a República nada fez para restaurar tantos danos, ignorando a tamanha miséria provocada.

Evandro Moreira, historiador e memorialista capixaba, conta em suas obras que, logo após o 13 de maio, uma multidão de ex escravizados, malvestidos e com seus poucos pertences, vagava no entorno de Cachoeiro de Itapemirim, onde havia muitas fazendas escravocratas produtoras de café. Desorientados e sem fazer o que efetivamente poderiam fazer no novo quadro social, grande parte deles acabou retornando ao campo, voltando até mesmo às propriedades onde trabalhavam forçadamente. Tudo isso foi de uma grande perversidade, denotando por parte do poder estabelecido o desprezo por vidas humanas em série, em grande escala. E não foi por acaso.  

Discípulo do embaixador Alberto da Costa e Silva, Flávio Gomes escreveu, com Sandra Martins da Silva, um ensaio intitulado Dos Horizontes e das Políticas da Memória: Sobre a História e o Ensino da História da Escravidão e da Pós-Emancipação no Brasil, publicado em O Espelho da Negra da África, organizado por Adriana Campos, Gilvan Ventura da Silva e Katia Motta. Nele, os autores afirmam que o esforço para apagar um passado considerado incômodo também foi acompanhado pela construção de uma memória seletiva do processo de emancipação, que apresentava a Lei Áurea como uma dádiva concedida pela romântica figura da princesa Isabel, amparada pela ação apenas dos abolicionistas brancos e dos parlamentares da época.

Houve, para eles, a imagem idealizada do 13 de maio, que produziu uma série de silêncios sobre as batalhas pela abolição, marcadas por jornais que reivindicaram o fim da escravidão, além das fugas coletivas e outras tantas batalhas organizadas pelos cativos. Enfim, houve toda uma operação social para criar esse ambiente racista e desigual no qual ainda estamos mergulhados e do qual só sairemos quando decidirmos que realmente queremos ser uma nação mais justa.

** João Gualberto é pesquisador e professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA), e já foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018.

As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM

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