Rubem Braga e a identidade das cidades
Rubem Braga é capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, como todos os que leem este meu texto sabem muito bem
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em 31 de maio de 2025, às 09h00

Por João Gualberto
Rubem Braga é capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, como todos os que leem este meu texto sabem muito bem. Quando pensei em fazer, através dos textos que venho publicando neste espaço, uma viagem pela literatura, dela pretendia tirar lições sobre o cotidiano capixaba. Além disso, tinha a intenção de aprofundar o entendimento sobre a construção do nosso imaginário social. Assim, logo imaginei que um dos maiores cronistas brasileiros – considerado por alguns, de fato, o maior do século XX – não poderia estar ausente do meu quadro analítico. Seu livro Crônicas do Espírito Santo, que acabo de reler e recomendo fortemente, é uma aula sobre o nosso estado nos anos 1920, partindo da sua infância em Cachoeiro, como não poderia deixar de ser.
Também é uma aula sobre as condições da natureza do Espírito Santo dos anos 1940 a 1951, registrada sobretudo nos seus relatos de viagens ao Norte do estado, em especial ao Rio Doce, no trecho que vai de Linhares a Colatina. O vale descrito não existe mais, o rio navegável e caudaloso hoje tem trechos que podem ser atravessados a pé. Existem tantos bancos de areia em seu leito que, muitas vezes, dependendo da época do ano, há mais areia que água. A mata então existente simplesmente desapareceu. Praticamente nada restou, e junto com ela foram dizimadas a fauna e a flora. Nossa natureza foi eliminada pela modernidade.
Rubem Braga nasceu em 1913, portanto a fase da infância a que ele se refere nas crônicas deve ser por volta dos anos 1920, no início do século passado. Estamos falando de algo distante para a velocidade dos tempos em que vivemos. O ritmo da vida mudou muito desde então. Havia a relativa estabilidade que nos davam as famílias antigas e as casas em que morávamos, num mundo de certo modo previsível, portador de poucas transformações. Não é por outra razão que as cidades nos emprestam identidade, já que elas permanecem mais ou menos como são durante a nossa rápida existência.
As trajetórias das cidades onde nascemos e crescemos também são as nossas próprias trajetórias, com suas casas, suas ruas, seus personagens marcantes de todas as classes sociais. Rubem era filho de um coronel importante, que foi o primeiro prefeito de Cachoeiro de Itapemirim. A vida que ele nos narra naquela cidade – a mais importante economicamente do Espírito Santo do início do século XX – era a das suas elites, de seus homens, mulheres e famílias mais abastadas.
Entretanto, na cidade descrita no livro, a diferença social era pouco sentida, afinal os antigos grupos escolares e os ginásios, que correspondem hoje ao ciclo fundamental e ao ensino médio, eram os espaços de educação e socialização a que todos tinham acesso. Os hospitais e centros de saúde, também públicos, atendiam igualmente aos ricos, aos pobres e à pequena classe média da cidade. Assim, a diferenciação social era de fato menos intensa.
Já as cidades brasileiras do século XXI, mesmo as menores, como várias do Espírito Santo, estão contaminadas por um novo espírito dos tempos: o da acentuada divisão das várias camadas sociais que as compõem. A bola que os meninos jogavam na rua praticamente desapareceu, substituída por esportes mais sofisticados praticados em espaços mais exclusivos, aos quais só tem acesso quem tem dinheiro.
A isso tudo se adiciona o caráter de ostentação que os ricos ou os quase ricos ganharam no Brasil. A cultura da ostentação está visceralmente ligada ao universo das celebridades que marcam o nosso cotidiano atual. Na verdade, as redes sociais tornaram-se um novo ambiente de socialização de meninas e meninos, que os remete ainda a um outro ambiente, o digital. Isso os afasta de qualquer cotidiano que leve o território em conta. Assim, o mundo descrito por Rubem Braga em Cachoeiro, que era o mundo urbano do início do século XX, foi atropelado pela modernidade digital, das ostentações e do mundo privado que só o dinheiro pode comprar.
Em uma análise mais sociológica, a identidade que as cidades nos davam foi ficando cada vez menos importante, até porque elas foram ficando cada vez mais parecias umas com as outras. As diferentes camadas sociais que as constroem foram se afastando no cotidiano da vida. As compras on line, que marcam a vida pós pandemia, também diminuíram a importância dos comércios locais. A territorialidade cultural está sendo invadida por um outro fenômeno na sociedade, mas isso é história para uma nova coluna.
Fica da leitura de Rubem Braga, de seu texto leve e saboroso, a ideia de um outro Brasil, mais suave, mais delicado, que a modernidade está se encarregando de matar.
** João Gualberto é pesquisador e professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA), e já foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018.
As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM
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