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Economia

Capixabas usam experiências pessoais para moldar negócios e empreender

Empresas criadas por Júlia e Julio apostam no acolhimento para atrair clientes e transformar segmentos onde estão inseridas

Por Denys Lobo

12 mins de leitura

em 01 de jun de 2024, às 12h21

Com uma média de 150 pacientes atendidos por mês, Julia Schuwartz transformou a Maya Saúde na principal rede de cuidado de idosos do Espírito Santo (Foto: Bernardo Coutinho)
Com uma média de 150 pacientes atendidos por mês, Julia Schuwartz transformou a Maya Saúde na principal rede de cuidado de idosos do Espírito Santo (Foto: Bernardo Coutinho)

Olhar para a própria história, avaliar o que deu certo e o que pode melhorar, com o intuito de ajudar outras pessoas a solucionar problemas que também já enfrentaram. É dessa forma, usando muito da própria experiência pessoal e apostando bastante na humanização do negócio, que empreendedores têm conseguido alcançar sucesso e, consequentemente, mudar a sociedade onde estão inseridos.

Foi, dessa forma, talvez em um dos momentos mais dolorosos de sua vida, que a capixaba Júlia Schuwartz teve a primeira ideia de abrir sua empresa. Após sua mãe ser diagnosticada precocemente com Alzheimer e precisar de atenção constante, ela e os irmãos perceberam como era difícil encontrar pessoas qualificadas para auxiliá-los com os cuidados diários, enquanto tentavam conciliar a nova rotina com os demais compromissos do dia a dia.

“Durante essa jornada de cuidados com a minha mãe, tivemos muita dificuldade para encontrar profissionais realmente capacitados. Na maioria das vezes, nós contratávamos as pessoas da mesma forma que a maioria das outras famílias: por meio de indicação. Geralmente, era uma empregada doméstica ou alguém que já tinha trabalhado para algum outro conhecido. A questão é que, por mais que essas pessoas tivessem boa vontade, elas não tinham capacitação adequada para o serviço”, explica.

Em julho de 2021, dois anos depois da morte de sua mãe e com toda a vivência pessoal e experiência que adquiriu durante esse período, Júlia fundou a Maya Saúde. A empresa, que busca ser a maior rede de cuidados para idosos do Brasil, tem como objetivo principal ajudar a conectar famílias com idosos que precisam de cuidados com profissionais capacitados, garantindo para esses pacientes um serviço de qualidade e que trouxesse conforto e segurança.

“A verdade é que as famílias, de uma forma geral, estão muito despreparadas para cuidar de um idoso. Além de usar muito do que eu mesma tinha vivenciado, antes de abrir a empresa, eu ouvi muita gente, fui em hospitais, conversei com médicos geriatras e também com famílias que estavam passando pela mesma situação. Então, a ideia sempre foi que a Maya conseguisse fazer esse movimento social, de orientar a família, os filhos e cuidar desses pacientes da melhor forma possível”, conta Júlia.

A empresa

Sem vínculo direto com esses profissionais, o modelo de negócio adotado pela Maya Saúde é de fazer apenas a intermediação entre eles e as famílias dos pacientes. Após fazer uma análise pessoal e profissional desses trabalhadores, eles entram em um sistema da empresa, que se torna responsável por gerenciar o local de trabalho de cada um, de acordo com as necessidades.

Atualmente, fazem parte da lista de profissionais credenciados cuidadores de idosos, técnicos de enfermagem, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e médicos. Além disso, a empresa também faz outros serviços, como a compra de medicamentos e produtos, e a retirada de medicação na farmácia cidadã – todos entregues diretamente no endereço cadastrado pelas famílias desses idosos.

Vivendo com o pai, o senhor Bival Torres, de 86 anos, acamado em virtude do Alzheimer, Vanusa Torres é uma das clientes mais antigas da empresa. Para ela, que utiliza tanto os serviços dos cuidadores quanto os de gerenciamento e entrega de produtos, o suporte oferecido pela Maya tem sido fundamental para ela e para a mãe, Penha Torres. 

Atendimento qualificado prestado pelas cuidadoras Cleidia, Jessica e Madalena se tornou fundamental para Penha Torres nos cuidados ao marido, Bival Torres (Foto: Bernardo Coutinho)

“No início da doença, meu pai era super ativo e fazia tudo sozinho. Só que, nos últimos quatro anos, ele tem ficado muito mais debilitado, então esse apoio da Maya Saúde é indispensável. As cuidadoras me ajudam com quase todos os cuidados que meu pai requer. São elas que dão banho, trocam fralda, vigiam o horário da medicação. Isso me ajuda muito porque, além de filha, eu preciso ser mãe, esposa e fazer as coisas da minha rotina. Com certeza, sem esse auxílio seria muito mais difícil”.

Consolidação no mercado

Com um faturamento mensal de R$ 100 mil, a empresa atualmente presta serviço em 18 cidades e já ultrapassou as barreiras do Espírito Santo, com atendimento também em Campos dos Goytacazes (RJ) e Belo Horizonte (MG). Brasília e municípios do interior de São Paulo já estão no radar para os próximos planos de expansão.

“Nós começamos as operações com, aproximadamente, 90 trabalhadores e atualmente já são mais de 300 cadastrados na plataforma. Nesse período, o número de clientes também aumentou consideravelmente, saindo de 30 para 150 por mês, em média. A ideia é que em todos esses locais, a gente consiga conectar famílias e trabalhadores em um prazo máximo de duas horas”, detalha a empresária.

O crescimento profissional alcançado pela empresa, sem dúvidas, é bastante celebrado por Júlia. Entretanto, segundo a empreendedora, são as melhoras pessoais que lhe trazem uma maior satisfação.

“Eu sempre digo que a Maya nasceu com uma cultura muito forte de impacto e é muito bom ver os resultados que estamos conseguindo. São famílias que não se falavam mais, por conta do desgaste que esse cuidado com a pessoa idosa gerava, que voltaram a viver em harmonia. São as melhoras significativas que observamos nos próprios pacientes depois que eles passaram a contar com profissionais capacitados. E é também a diferença que nós observamos na vida desses trabalhadores que atuam conosco, que são, em sua maioria, mulheres. Hoje, muitas delas conseguiram construir suas casas, melhoraram seu nível de instrução profissional, se casaram, pagaram faculdade para filhos”, aponta.

Outro cenário, mesmo propósito

Apesar de estar inserido em um negócio diferente e com uma trajetória totalmente distinta, também é por meio de sua empresa que Julio do Espírito Santo, de 26 anos, tem conseguido transformar a sua vida e a de seus clientes.

Em 2021, após o local em que trabalhava fechar, Julio do Espírito Santo abriu as portas da Mr. Boldness e a transformou em umas das principais barbearias do Centro de Vitória (Foto: Bernardo Coutinho)

Homem trans e dono de uma barbearia no Centro de Vitória (ES), Julio começou a empreender “na marra”, após o estúdio onde ele trabalhava há mais de dois anos fechar durante a pandemia.

“Sempre fui uma pessoa que se dedicou e correu atrás das coisas, mas empreender não era o intuito inicial, simplesmente acabou acontecendo. Quando a barbearia que eu trabalhava fechou, precisei tomar uma decisão sobre o que fazer. Como eu gostava bastante do bairro onde atendia e já tinha uma clientela fixa na região, decidi abrir meu próprio negócio”, esclarece.

Se tornar um barbeiro e fazer disso a sua vocação profissional, no entanto, nunca esteve nos pensamentos iniciais de Julio. Monitor escolar em uma escola, foi durante uma passagem importante de sua trajetória, no fim da adolescência, que a ideia surgiu pela primeira vez.

“Meus pais são separados há muitos anos, ela é pastora e ele caminhoneiro. Logo antes de fazer 18 anos, eu decidi me assumir para o meu pai, que era a pessoa que ainda não sabia. Assim que terminei de contar para ele, fui direto para uma barbearia cortar meu cabelo, que era uma coisa que eu queria fazer há anos, mas minha mãe nunca permitiu. Na época, raspei o cabelo do lado e fiquei muito feliz durante o processo porque eu comecei a me ver da forma que eu gostaria. A partir daí, passei a ver a barbearia não só como um lugar onde as pessoas vão cortar o cabelo, mas também como um local onde a própria pessoa se enxerga, algo que traz identidade”, comenta.

Dura realidade

Além de todas as adversidades habituais encontradas por quem decide abrir seu próprio negócio, o simples fato de ser quem é torna ainda mais difícil as missões, de empreender e sobreviver, para Julio e diversos outros transexuais no país.

De acordo com uma pesquisa divulgada pela Agência AlmapBBDO, em parceria com o Instituto On The Go, 80% das pessoas trans do Brasil têm vontade de empreender, porém, apenas 24% conseguem. Outro dado – este ainda mais triste e alarmante – é o que traz, pelo 15º ano consecutivo, o Brasil como o país que mais mata pessoas trans, segundo levantamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

Mesmo diante dessa triste realidade, a Mr. Boldness, que funciona desde abril de 2021, conseguiu se firmar e tem se tornado, cada vez mais, um ambiente seguro e acolhedor para todas as pessoas, especialmente o público LGBTQIA+.

“Logo no início da minha trajetória profissional, eu trabalhei em dois locais e tive alguns problemas. Então, a minha ideia sempre foi fazer com que todas as pessoas se sentissem à vontade e acolhidas dentro desse cenário de barbearia. Isso também ajuda a quebrar um pouco o paradigma relacionado a esses espaços, que geralmente são voltados para homens cis héteros e estão carregados de preconceito”, revela o empresário.

Graças a persistência e ao bom trabalho inicial de Julio, a barbearia segue crescendo desde que abriu as portas. Para dar conta dos 300 atendimentos mensais que são realizados no espaço, ele precisou ir ao mercado contratar mais dois profissionais, especialmente para que ele também conseguisse focar mais na gestão do espaço. As vagas abertas foram preenchidas por José Antônio, um homem trans, e Júlia, uma mulher lésbica. 

“Os dois foram contratados e entraram na equipe graças a capacidade profissional deles, mas a gente sabe como é difícil que pessoas do público LGBTQIA+ tenham oportunidade. Muitas pessoas e empresas julgam sem conhecer a pessoa ou o profissional, mas a orientação sexual ou a identidade de gênero não significa nada. Fico muito feliz de trabalhar com eles, são pessoas esforçadas e muito competentes, que também conseguiram confiar no meu trabalho. Por isso, sempre que eu puder, vou dar oportunidade para essas pessoas, afinal elas não têm apoio nenhum”, diz.

Oportunidade e referência

Ter encontrado uma barbearia onde se sinta seguro e respeitado talvez seja o motivo para que José Antônio Laia, de 24 anos, ainda esteja trabalhando no ramo da beleza. Mineiro de Ipatinga, ele se mudou com a família para o Espírito Santo em 2018 e decidiu fazer o curso de barbeiro em 2021, logo depois de trancar a faculdade de filosofia.

No momento de ampliar a barbearia, Julio optou por dar oportunidade e contratar José Antônio e Júlia Baldan, ambos também do público LGBTQIA+: “Muitas pessoas e empresas julgam sem conhecer a pessoa ou o profissional, mas a orientação sexual ou a identidade de gênero não significa nada. Fico muito feliz de trabalhar com eles”, diz (Foto: Bernardo Coutinho)

No entanto, as experiências traumáticas e o preconceito sofrido em alguns locais de trabalho quase o afastaram de vez da profissão. “Teve um local que eu só trabalhei só por três dias, pois sofri transfobia e assédio do próprio dono do estabelecimento, ainda durante o período de treinamento. Eu saí de lá e não voltei nunca mais. Entrei em depressão, tive crises de ansiedade e comecei a questionar se eu tinha feito a escolha certa de ter trancado a faculdade”, detalha.

Após ficar um período sem trabalhar, José conheceu a Mr. Boldness por meio de um amigo e antigo cliente que frequentava o local. Mesmo ouvindo que aquele era um ambiente diferente e que tinha ali uma pessoa com uma história minimamente parecida, os primeiros contatos foram tímidos, muito em razão das últimas experiências traumáticas. O trabalho na barbearia, como ele mesmo conta, começou após uma conversa que se tornou uma entrevista de emprego.

“No início, eu fiquei bem receoso. Por mais que eu tenha visto que era uma barbearia diferente das outras, não me sentia seguro. Com o tempo, fui criando confiança e me aproximando um pouco mais do Julio, tanto na esfera profissional quanto na pessoal. Ter como chefe e referência um homem trans, que tem recortes sociais bem parecidos com os meus, me ajuda a me sentir ainda mais representado. Fico muito feliz que ele esteja conseguindo alavancar outras pessoas”, conta José, que há um ano, além de barbeiro e esteticista, também tem dado aula para jovens em Centros de Referência para Juventude (CRJ) localizados na Grande Vitória.

Mais visibilidade

De acordo com Deborah Sabará, diretora nacional da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), as pessoas LGBTQIA+ vem descobrindo que também há lugar para elas dentro do empreendedorismo. No entanto, ainda faltam espaços com um olhar mais aberto para a diversidade, que ofereçam ajuda e informação para este público.

“Uma das coisas mais legais é que, atualmente, as pessoas LGBT têm deixado para trás o estereótipo de que elas precisam se encaixar em determinadas áreas, principalmente a da beleza. Então, tem surgido diversos outros tipos de profissionais, que chegam com um olhar para outros grupos que também encontram dificuldade para empreender, que são as pessoas pretas e periféricas”, frisa Deborah.  

Coordenadora da Associação Grupo, Orgulho, Liberdade e Dignidade (Gold), que oferece apoio e luta pelo direito de pessoas LGBTQIA+ no Espírito Santo, Deborah afirma que a diminuição da violência e do preconceito, principalmente contra o público trans, está diretamente ligada a uma maior visibilidade. 

“De forma geral, o estado já violenta demais este público, afinal nós pagamos impostos como todas as outras pessoas, mas não temos os direitos que são dados às outras pessoas. Então, é preciso que haja uma maior aceitação da sociedade para que a gente consiga derrubar essa barreira de ódio e preconceito que existe contra as pessoas trans. E também é preciso que os proprietários dos mais variados espaços entendam que nós temos capacidade de trabalhar e que ofertem vagas de emprego para travestis e transexuais. Quando nós trabalhamos, nós somos vistos, nos sentimos parte daquela sociedade”, finaliza.

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