Turismo para poucos: quando a acessibilidade ainda não embarcou

É necessário olhar nos olhos de quem está cansado de ser ignorado e perguntar, com humildade: como podemos te servir melhor? Só assim deixaremos de falar de turismo acessível como um ideal distante, e passaremos a vivê-lo como uma conquista presente.

Por Marcel Carone

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Imagine planejar uma viagem e ser obrigado a perguntar: será que vou conseguir entrar no hotel? Será que vou conseguir usar o banheiro? Ou simplesmente: será que terei o direito de chegar até lá?

Essa é a realidade cotidiana de milhões de brasileiros com deficiência, mobilidade reduzida ou limitações sensoriais. Para eles, o turismo não é sinônimo de descanso ou lazer, mas sim de obstáculos, exclusão e invisibilidade institucionalizada.

Durante décadas, o turismo foi vendido como um motor de desenvolvimento econômico, um vetor de inclusão, uma ponte entre culturas. Mas se há uma ponte, ela ainda está quebrada para muita gente. O Brasil, apesar de suas riquezas naturais, culturais e históricas, ainda está longe de ser um país que oferece turismo para todos. E o motivo é direto: falta de acessibilidade real e, principalmente, falta de compromisso político contínuo.

Durante os últimos 20 anos, inúmeras ações foram prometidas. Algumas começaram bem: projetos pioneiros em cidades como Socorro (SP), cartilhas técnicas, planos nacionais com o termo “inclusão” no título. Mas a inclusão que começa na capa não necessariamente chega à prática.

Em muitos casos, o que se viu foram documentos bem-intencionados, mas desconectados das reais necessidades do público que deveriam atender. A acessibilidade virou uma palavra bonita para discursos institucionais, mas vazia de impacto direto na vida de quem precisa subir um degrau ou atravessar uma calçada sem se arriscar. Afinal, o turismo acessível não se faz com marketing. Faz-se com banheiro adaptado, com rampas seguras, com treinamento e empatia.

Talvez o maior problema não seja a ausência de políticas públicas, mas sim sua fragmentação. A cada gestão, surgem novas cartilhas, novos slogans, novos relatórios. Mas pouca continuidade. Pouco acompanhamento. Pouca escuta.

E o mais alarmante: justamente quem mais entende do assunto, as pessoas com deficiência e todas as vozes que as representam, quase nunca é convidado a ocupar o espaço onde as decisões são tomadas. São falas silenciadas em mesas que deveriam ser compartilhadas. Elabora-se política pública sem ouvir o público. E essa incoerência gera programas que não funcionam, aplicativos que não atendem às diretrizes mínimas de acessibilidade digital, e treinamentos que nunca chegam aos profissionais da linha de frente.

Turismo acessível exige mais do que estruturas físicas. Exige mudança cultural e política, algo que não se resolve com uma rampa improvisada ou uma placa simbólica.

É fácil pensar em acessibilidade como algo técnico: uma norma da ABNT, uma largura mínima de porta, um piso tátil. Mas há uma barreira muito mais difícil de derrubar: a barreira atitudinal.

Enquanto houver garçons que evitam contato com pessoas com deficiência, recepcionistas que se dirigem ao acompanhante em vez do próprio hóspede, ou guias turísticos que tratam a deficiência como exceção indesejável, pouco adianta a existência de elevadores ou corrimãos. A acessibilidade plena começa pela mentalidade.

Não há investimento em infraestrutura que compense a ausência de empatia e respeito. E é aqui que a formação profissional se torna urgente: não há inclusão onde não há preparo humano.

Existe uma falsa crença de que adaptar o turismo custa caro. A pergunta correta seria: quanto custa excluir? Excluir significa perder milhões de consumidores em potencial, pessoas que viajam, consomem, indicam ou rejeitam destinos e serviços. A economia da acessibilidade é concreta. Trata-se de um mercado robusto, estável e em crescimento. A população está envelhecendo, e isso amplia ainda mais o público que precisa de ambientes acessíveis.

Turismo acessível não é favor. É um direito. E mais que isso, é uma oportunidade econômica e ética. É possível aliar responsabilidade social, inovação e lucratividade. Mas isso requer visão de longo prazo, algo que os governos ainda lutam para alcançar.

Ao longo dessas duas décadas, houve projetos relevantes: guias, aplicativos, cartilhas, diagnósticos. Mas falta integração e sistematização. As ações se concentram em eventos de grande visibilidade, como a Copa e as Olimpíadas, mas não deixam legado duradouro. Melhoram a fachada, mas não transformam a base.

Aplicativos mal testados, políticas optativas nos municípios, inspeções que não consideram os diferentes tipos de deficiência… A falta de planejamento contínuo e o foco excessivo em ações pontuais impedem que o turismo acessível se consolide como política de Estado, e não apenas de governo.

É preciso estabelecer um novo pacto social e institucional em torno do turismo acessível. Isso envolve planejamento estratégico com metas claras e obrigatórias, escuta ativa das pessoas com deficiência, formação continuada de profissionais, criação de selos reais de acessibilidade, com fiscalização e investimento em tecnologias assistivas e comunicação inclusiva. Não se trata apenas de construir rampas, mas de desconstruir preconceitos e estigmas. E reconstruir um modelo turístico que compreenda a diversidade humana como sua principal riqueza.

A verdadeira revolução do turismo brasileiro não será estética, será ética. Será o dia em que uma pessoa cadeirante poderá circular em qualquer destino do país sem medo. O dia em que uma pessoa cega poderá participar de uma trilha com autonomia. O dia em que a diferença não será um empecilho, mas um convite à reinvenção dos serviços.

Esse dia ainda não chegou. Mas ele só será possível se olharmos para além dos decretos, além dos slogans e dos editais. Será necessário olhar nos olhos de quem está cansado de ser ignorado e perguntar, com humildade: como podemos te servir melhor?

Só assim deixaremos de falar de turismo acessível como um ideal distante, e passaremos a vivê-lo como uma conquista presente.

*** Marcel Carone é jornalista, apresentador de tv, empresário, empreendeedor social comprometido com a inclusão, Embaixador da Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Síndrome de Down do Espírito Santo Vitória Down, Idealizador da “Brigada 21” e do “Pelotão 21”. É diplomado pela ADESG – Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra e Comendador do 38° Batalhão de Infantaria do Exército Brasileiro.

As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM