A epidemia digital de desinformação sobre o Autismo
Combater a desinformação é um dever cívico de todos nós na era digital. Juntos, podemos fazer com que a voz da ciência e da conscientização supere o grito do obscurantismo, garantindo um futuro mais seguro, inclusivo e informado para as pessoas autistas e para toda a sociedade
26 mins de leitura
em 02 de jun de 2025, às 10h52

Por Marcel Carone
Nos últimos anos, o fenômeno da desinformação atingiu proporções alarmantes no contexto do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Um estudo inédito, conduzido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em parceria com a associação Autistas Brasil, revelou que o volume de informações falsas sobre o autismo cresceu mais de 15.000% entre 2019 e 2024. Em outras palavras, nas comunidades digitais analisadas, especialmente grupos públicos do aplicativo Telegram, o conteúdo enganoso envolvendo o TEA tornou-se 150 vezes mais abundante nesse período. Esse salto impressionante, descrito pelos pesquisadores como uma verdadeira “epidemia digital”, indica que as “curas milagrosas” e teorias conspiratórias sobre autismo passaram a ter mais alcance do que informações científicas confiáveis, colocando vidas em risco e convertendo a desinformação em um modelo de negócio lucrativo.
A gravidade do problema fica evidente quando observamos a dimensão desses grupos virtuais e seu conteúdo. O levantamento analisou mais de 60 milhões de mensagens públicas no Telegram, postadas em cerca de 1.600 grupos conspiratórios sobre autismo que reúnem 5 milhões de usuários em 19 países da América Latina e Caribe. Dentro desse universo paralelo de discussões, foram identificadas 150 supostas “causas” falsas do autismo e outras 150 falsas “curas”, indo de alegações bizarras a propostas perigosas. O Brasil, em particular, desponta como o maior foco regional desse conteúdo desinformativo: quase metade de todas as postagens conspiratórias sobre autismo em língua portuguesa ou na região se originaram de comunidades brasileiras. Isso equivale a mais de 22 mil publicações enganosas provenientes do Brasil, que alcançaram potencialmente cerca de 1,7 milhão de pessoas e somaram quase 14 milhões de visualizações nos últimos anos. Em volume de desinformação, o Brasil lidera com folga, seguido por países como Argentina, México, Venezuela e Colômbia.
Esses números assustadores evidenciam a relevância do estudo e a urgência de discutirmos suas implicações. A desinformação sobre o TEA não é apenas um fenômeno estatístico, ela tem consequências reais e potencialmente devastadoras para a comunidade autista e para a sociedade em geral. Para dimensionar o impacto, basta lembrar que o autismo não é um tema marginal: estima-se que uma em cada 160 crianças no mundo seja autista, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde, embora estudos mais recentes apontem prevalências ainda maiores. No Brasil, aproximadamente 2,4 milhões de pessoas vivem com o TEA. Isso significa que, direta ou indiretamente, milhões de famílias brasileiras convivem com o autismo em seu dia a dia. Quando informações falsas sobre o transtorno se propagam nessa escala, elas influenciam percepções, atitudes e decisões de uma parcela significativa da população, muitas vezes em detrimento do bem-estar e dos direitos das pessoas autistas.
Nesta coluna, analisaremos criticamente o papel das redes sociais, com ênfase no Telegram, na disseminação de “curas” infundadas, teorias conspiratórias e linguagem pseudocientífica ligada ao autismo. Examinaremos os efeitos dessa avalanche de desinformação na vida de pessoas autistas e suas famílias, incluindo o reforço de preconceitos, a exposição a práticas nocivas e os impactos na saúde mental e física. Diante de uma crise de informações falsas que cresce exponencialmente, é imprescindível mobilizar uma resposta coletiva, envolvendo governo, plataformas digitais, mídia, educadores, famílias e cada cidadão, para reverter esse quadro e proteger tanto a comunidade autista quanto a integridade da informação científica.
Redes sociais, Telegram e a propagação de teorias pseudocientíficas
Os resultados do estudo deixam claro que as redes sociais têm sido o principal vetor de difusão das falsidades sobre o autismo, com destaque preocupante para o Telegram. Mas o que torna essa plataforma um terreno tão fértil para teorias conspiratórias e anúncios de curas milagrosas? Diferentemente de redes mais visíveis como Facebook ou Twitter, o Telegram oferece grupos massivos e relativamente pouco monitorados, onde mensagens podem ser difundidas para dezenas de milhares de membros sem filtragem eficaz. Entre 2015 e 2025, conforme mapeado pela pesquisa, surgiu no Telegram uma rede de 1.659 grupos “conspiratórios” dedicados ao autismo, muitos ligados a comunidades antivacina, negacionistas climáticos e até adeptos da crença em Terra plana. Essas comunidades funcionam em diversos idiomas na América Latina, mas o conteúdo em português se destacou pelo volume e pelo grau de organização.
Um ponto-chave é que o fluxo de desinformação nesses canais aumentou de forma exponencial, especialmente a partir de 2019. Para se ter ideia, em janeiro de 2019 registravam-se apenas 4 postagens mensais sobre autismo nos grupos analisados; já em janeiro de 2020, esse número saltou para 35 postagens mensais, e em janeiro de 2025 atingiu 611 postagens no mês. Esse crescimento exponencial, de 4 para 611 posts/mês em seis anos, isto é, 15.000% de aumento, não ocorreu por acaso. Os pesquisadores observam que a pandemia de covid-19 atuou como um catalisador desse processo. Com a crise sanitária veio um ambiente de medo, incerteza e baixa confiança nas instituições, terreno fértil para teorias da conspiração de todos os tipos. Grupos inicialmente focados em pautas antivacinação expandiram seu repertório e passaram a incorporar o autismo como “nova frente de pânico moral” durante a pandemia, ligando-o falsamente aos imunizantes contra covid e outros fantasmas modernos. Ou seja, a desinformação sobre o autismo foi cooptada por redes conspiracionistas maiores, que viram no tema mais um mote para alimentar narrativas anticientíficas.
Dentro desses ambientes virtuais, as estratégias retóricas e operacionais seguem um padrão bem definido. Em primeiro lugar, os grupos atuam como bolhas de reforço mútuo: os participantes compartilham e comentam as mesmas ideias entre si, repetidamente, criando uma sensação de validação coletiva. Se alguém posta, por exemplo, que “vacinas causam autismo” ou que “há uma cura milagrosa suprimida pela indústria farmacêutica”, outros membros rapidamente corroboram, adicionando relatos anedóticos ou novas “provas” fabricadas, o que dá ao novato a impressão de que aquela visão é amplamente aceita. Em segundo lugar, explora-se intensamente a linguagem da ciência, porém de forma deturpada. Termos técnicos e jargões médicos são usados fora de contexto para dar aparência de credibilidade a teorias infundadas. Assim, um tratamento milagroso é descrito como “terapia de detoxificação celular com agente quelante”, e uma teoria absurda ganha verniz de seriedade ao falar em “disruptores neuroendócrinos quânticos”, por exemplo. Essa pseudociência vernacular confunde leitores leigos, que podem confundir tais discursos com informações legitimamente embasadas.
Além do uso de jargão científico, as comunidades conspiratórias sobre autismo lançam mão de narrativas místicas e apelos emocionais. Como bem observou um coordenador do estudo da FGV, esses grupos se assemelham a “seitas digitais”, mesclando pseudociência, negacionismo, espiritualidade e teorias da conspiração diversas. Não raramente, elementos de fé são instrumentalizados: os autoproclamados “curadores” invocam conceitos de energia, aura ou mesmo religiosidade, prometendo que o autismo pode ser revertido por meio de orações especiais, passes espirituais ou outros métodos não reconhecidos. Essa abordagem espiritual muitas vezes vem acompanhada de incentivos explícitos para que famílias abandonem tratamentos médicos comprovados, sob a alegação de falta de fé ou de confiança em uma “verdade revelada” alternativa. Tal prática não só coloca em risco a saúde do autista, privado de terapias baseadas em evidências, como também reforça a culpa sobre pais e cuidadores, insinuando que eles seriam responsáveis pelo transtorno por não acreditarem o suficiente nas supostas curas ou por não “rezarem corretamente”. É um jogo retórico cruel, que explora profundamente as emoções das famílias.
Dentro desse arcabouço conspiratório, o autismo é invariavelmente pintado como algo a ser combatido ou erradicado, uma tragédia imputável a fatores externos malignos, em vez de ser compreendido como parte da diversidade humana. Essa visão distorcida reforça preconceitos históricos. Nas bolhas virtuais, o TEA deixa de ser uma condição de desenvolvimento neurológico para se tornar ora um “mal do mundo moderno” causado por tecnologias e vacinas, ora um “castigo” espiritual, ou até uma fraude criada por interesses escusos. Em todos os casos, a pessoa autista é desumanizada: tratam-na como um doente a ser curado a qualquer custo, não como um indivíduo com identidade e direitos. “O mais grave é que, nessas bolhas, o autismo é tratado como algo a ser combatido ou curado, reforçando preconceitos e estimulando práticas prejudiciais à saúde pública”, alerta a FGV. Essa frase sintetiza bem o efeito nefasto da desinformação: ela valida antigos estigmas, como a ideia ultrapassada de que pessoas autistas “não podem viver bem” sem uma cura, e leva à adoção de condutas perigosas, sob o pretexto de salvar o indivíduo do seu próprio transtorno.
Por fim, um elemento crucial no modus operandi dessas comunidades online é a monetização do medo e da esperança. Os grupos conspiratórios frequentemente aplicam estratégias típicas de marketing digital para expandir seu alcance e faturar: primeiro, constroem narrativas de medo, exagerando problemas ou criando pânicos morais (por exemplo, afirmam que “uma conspiração global está envenenando crianças para deixá-las autistas”); em seguida, oferecem a solução milagrosa para esse terror fabricado, quase sempre um produto ou serviço vendável. Essa solução pode ser uma substância (vitaminas “especiais”, suplementos “desintoxicantes”, fórmulas caseiras), uma terapia alternativa (câmaras hiperbáricas, protocolos experimentais sem validação) ou até cursos e livros que prometem ensinar os pais a “curar” seus filhos. Em muitos casos, o mesmo perfil que espalha a desinformação também lucra com a venda dessas soluções, demonstrando de forma clara como a desinformação se tornou um negócio. Nas plataformas como o Telegram, onde não há fiscalização ativa, esse comércio do engano floresce sem barreiras: influenciadores conspiracionistas divulgam links para lojas virtuais, grupos vendem kits de suplementos de procedência duvidosa, e charlatães angariam doações ou taxas de inscrição de desesperados em busca de esperança.
Consequências para a comunidade autista: preconceitos e práticas nocivas
A proliferação de falsidades sobre o TEA não é um crime sem vítimas, pelo contrário, as vítimas estão entre as parcelas mais vulneráveis da sociedade: as pessoas autistas (incluindo muitas crianças) e seus familiares. Em primeiro lugar, a maré de desinformação intensifica o estigma e os preconceitos em torno do autismo. Quando teorias conspiratórias ganham eco, elas tendem a buscar culpados ou causas malévolas para o transtorno. Já houve alegações infundadas responsabilizando vacinas, radiação de antenas 5G, alimentos industrializados (até salgadinhos como Doritos), chemtrails (rastros químicos de aviões) e até inversões do campo magnético da Terra como causadores do autismo. Todas essas teorias carecem de base científica; o consenso médico é que o autismo resulta de fatores complexos, sobretudo genéticos e ambientais, sem uma causa única definida. Entretanto, quando tais ideias se espalham, muitos passam a ver o autismo como algo “artificialmente imposto” à criança por algum agente externo maligno. Com isso, os pais são levados a procurar culpados em vez de focar na aceitação e no apoio ao desenvolvimento do filho. Alguns chegam a se culpar (“Será que dei comida X e causei isso?” ou “Vacinei meu bebê e o danifiquei?”), o que abala profundamente a saúde mental familiar. Outros, influenciados pelo discurso paranoico, passam a enxergar o autista com temor ou aversão, como se ele carregasse um “mal” causado por vacinas ou outras fontes conspiratórias. Em resumo, essas narrativas falsas patologizam ainda mais o TEA, tratando-o como tragédia evitável e não como parte da identidade da pessoa, o que agrava o capacitismo e dificulta a inclusão social.
Em segundo lugar, a desinformação coloca a comunidade autista em risco direto ao incentivar práticas “terapêuticas” perigosas e sem fundamento. O estudo da FGV catalogou 150 falsas curas para o autismo propagadas nesses grupos. Entre elas, encontram-se desde supostos remédios milagrosos até procedimentos absurdos. Substâncias como dióxido de cloro (a chamada “solução mineral milagrosa”), prata coloidal, azul de metileno e até fórmulas de vermífugo para “desparasitar” o intestino são alardeadas como capazes de reverter o autismo. Procedimentos extremos como ozonioterapia retal e aplicações de choque elétrico tipo “Bobina de Tesla” também figuram na lista de “tratamentos” promovidos por alguns grupos. Todos esses métodos carecem de qualquer eficácia comprovada e, pior, podem provocar danos irreparáveis à saúde. Por exemplo, o dióxido de cloro, vendido fraudulentamente como MMS (Miracle Mineral Solution), nada mais é do que um alvejante industrial; sua ingestão tem provocado intoxicações graves e já foi ligada a dezenas de casos de envenenamento e até mortes em outros países. Da mesma forma, a prata coloidal pode levar a condições como argiria (pigmentação azulada irreversível da pele) e danos nos órgãos, se consumida regularmente. Quando famílias desesperadas, muitas vezes mal orientadas, submetem crianças autistas a essas intervenções pseudocientíficas, estão inadvertidamente causando sofrimento adicional, às vezes com consequências trágicas.
Os danos não são apenas físicos. A saúde mental e o bem-estar emocional das pessoas autistas e de suas famílias também são profundamente afetados pela desinformação. Imagine o caos psicológico de pais que, ao receber o diagnóstico do filho, em vez de acolhimento encontram uma enxurrada de conteúdos online dizendo que autismo “tem cura se você fizer X ou Y”, ou pior, que “poderia ter sido evitado se não fosse tal vacina ou alimento”. Esses pais frequentemente passam por estágios de luto, negação e culpa; as teorias conspiratórias exploram exatamente essas emoções, amplificando a culpa (“você vacinou, portanto, causou isso no seu filho”) ou dando falsas esperanças seguidas de frustração (“se você fizer este tratamento milagroso, ele vai deixar de ser autista”). Quando a promessa inexoravelmente falha, pois autismo não tem cura conhecida, os pais se veem duplamente devastados: pelo insucesso e muitas vezes pelo prejuízo financeiro, já que gastaram tempo e dinheiro em algo inútil. Há relatos de famílias endividadas e exaustas por perseguirem cada nova “terapia revolucionária” que aparece nos grupos, desde dietas mirabolantes até viagens para clínicas alternativas de reputação duvidosa.
Para a pessoa autista em si, os efeitos podem ser igualmente desastrosos. Crianças são frequentemente sujeitadas a procedimentos dolorosos, restritivos ou traumatizantes em nome dessas curas. Há casos reportados (inclusive pela imprensa internacional) de crianças que sofreram queimaduras internas por ingestão de alvejante diluído, vômitos constantes, desidratação severa e até perfuração intestinal devido a enemas químicos aplicados por seus responsáveis, tudo sob orientação de grupos de curandeirismo digital. Mesmo em situações menos agudas, a multiplicidade de terapias não comprovadas pode roubar da criança autista uma infância relativamente tranquila, substituindo brincadeiras e educação especial adequada por um calendário interminável de sessões experimentais, dietas restritivas e procedimentos inúteis. O estresse imposto pode agravar as condições de comorbidade e gerar traumas: já se observou crianças desenvolvendo aversão extrema a qualquer intervenção de saúde após serem forçadas a ingerir substâncias de gosto e efeito horríveis. Psicologicamente, crescer sendo tratado como “defeituoso que precisa ser consertado” pode afetar a autoestima do autista, levando-o a se perceber como um fardo ou como alguém que decepciona os pais por não “melhorar”. Adultos autistas relatam repúdio e tristeza ao ver familiares presos nessas crenças, insistindo que eles tentem tratamentos sem sentido, o que prejudica relações e o suporte familiar.
As consequências da desinformação vão desde o intangível, o clima de preconceito, medo e culpa, até o tangível e irreversível, danos físicos, psicológicos e a perda de oportunidades de intervenção adequada. Cada vez que um mito sem fundamento é compartilhado, consolida-se um pouco mais a marginalização do autista: seja pela visão de que ele é “vítima de algo terrível” ou “portador de uma doença a ser eliminada”, seja pelas ações imprudentes que alguém possa tomar tentando “salvá-lo”. A longo prazo, se essa tendência não for contida, corre-se o risco de minar também os ganhos sociais importantes das últimas décadas, como a maior conscientização e aceitação do autismo. Em vez de inclusão, volta-se a falar em cura a qualquer custo; em vez de garantir terapias e educação especial, há quem prefira gastar recursos em charlatanismo. Por tudo isso, encarar a desinformação sobre o TEA não é apenas defender a verdade abstratamente, é proteger pessoas reais de sofrimento real, e garantir que autistas possam viver com dignidade, recebendo suporte baseado em evidências e respeito, não falsas promessas ou discriminação.
O lucro da desinformação
Um aspecto particularmente preocupante revelado pelo estudo é que a desinformação virou, ela própria, um negócio lucrativo dentro desse ecossistema. Charlatanismo médico não é novidade, porém, a escala global e a velocidade proporcionadas pelas plataformas digitais deram a vendedores de falsas curas e pregadores de teorias da conspiração um alcance sem precedentes. Como mencionado, muitos dos que difundem conteúdo conspiratório sobre autismo monetizam essas narrativas vendendo produtos ou serviços diretamente aos seguidores. Esse modelo de negócios da desinformação traz um incentivo perverso: quanto mais sensacionalista e amedrontador for o conteúdo, maior o engajamento online e, consequentemente, maior a base de potenciais clientes para as curas mágicas. Assim, a lógica econômica acaba premiando a mentira e a exploração do desespero. Influenciadores do engano podem ganhar milhares de reais vendendo e-books de curas naturais, frascos de suplementos “secretos” ou inscrições em retiros milagrosos. Alguns faturam também por meio de doações recorrentes de seguidores fiéis, que acreditam financiar uma causa nobre contra um suposto “establishment” médico maligno. Cria-se, desse modo, um mercado paralelo, onde a vulnerabilidade das famílias é explorada em troca de lucro, e quanto pior a informação, paradoxalmente, melhor para os negócios dos desinformantes.
Essa mercantilização da desinformação gera concorrência direta com fontes fidedignas. Enquanto institutos de pesquisa e organizações sérias de apoio ao autismo lutam para fazer chegar informações baseadas em evidências (geralmente com recursos limitados e linguagem contida), os mercadores da mentira investem pesado em marketing digital, anúncios direcionados e produção incessante de conteúdo emocionalmente apelativo. Como resultado, não é surpreendente que “curas milagrosas e teorias absurdas tenham mais alcance do que a ciência” nos meios digitais atuais. A consequência é devastadora: verdades complexas e nuançadas, como as sobre as intervenções genuinamente eficazes no autismo, que envolvem terapia comportamental, fonoaudiologia, apoio educacional, medicação apenas quando indicada etc. acabam soterradas por manchetes falsas que prometem resoluções fáceis e imediatas. A voz da ciência torna-se um sussurro em meio ao clamor das fake news, dificultando o esclarecimento da população.
Do ponto de vista da saúde pública, a situação configura um desafio multifacetado. Não se trata apenas de coibir um ou outro caso de propaganda enganosa, mas de enfrentar uma cultura de desinformação enraizada, quase como uma epidemia invisível (daí o termo “infodemia” frequentemente utilizado). Assim como um vírus, as informações falsas replicam-se de pessoa a pessoa, de grupo a grupo, muitas vezes mais rápido do que as iniciativas de correção conseguem atuar. E cada indivíduo “contagiado” por uma crença falsa pode tomar decisões danosas: não vacinar um filho, ministrar uma substância tóxica, difundir um boato na escola ou comunidade local, ou ainda propagar medo em outros pais. O tecido social sofre: profissionais de saúde veem-se desacreditados; educadores enfrentam resistência de responsáveis que acreditam em mitos (como os que acham que métodos educacionais inclusivos “vão piorar o autismo” porque leram algo equivocado); legisladores podem ser pressionados por grupos desinformados a apoiar projetos sem base científica (ou, no extremo oposto, a bloquear iniciativas importantes de inclusão ou pesquisa). A desinformação, enfim, sabota esforços coletivos e políticas bem-intencionadas, desviando foco e recursos para apagar incêndios causados por boatos em vez de avançar.
É importante frisar que essa ameaça não fica restrita ao mundo online, ela “transborda” para a vida real e demanda resposta institucional. No Brasil, por exemplo, a preocupação com os efeitos da desinformação sobre autismo e outros temas de saúde já chegou ao Parlamento. Há propostas para criar frentes legislativas dedicadas a discutir o combate às fake news e à manipulação digital, evidenciando que o poder público reconhece os riscos envolvidos. Em abril de 2025, tramitava no Senado Federal um projeto de resolução para instituir a Frente Parlamentar da Segurança Digital, com vistas a debater estratégias de regulação das plataformas, promoção de educação midiática e responsabilização de quem lucra com conteúdos prejudiciais nas redes. Essa última parte, responsabilizar quem lucra, é especialmente relevante no contexto do autismo, pois atacaria diretamente o incentivo econômico por trás de muitos disseminadores de bobagens e curas charlatãs.
Fica evidente que a desinformação desenfreada sobre o TEA configura uma crise de múltiplas dimensões: é uma crise para as famílias e indivíduos autistas, para a saúde pública que lida com repercussões tangíveis (como doenças e acidentes decorrentes de falsas crenças) e para a própria ciência, que vê seu espaço sendo invadido por um obscurantismo lucrativo. Enfrentar essa crise é um imperativo, sob risco de retrocedermos em conquistas médicas e sociais. Mas como fazer isso de modo eficaz? A resposta passa, inevitavelmente, pela formulação de políticas públicas robustas e pela mobilização coordenada de diversos atores sociais, como veremos a seguir.
Responsabilidade coletiva no enfrentamento da desinformação
A batalha contra a desinformação sobre o autismo, como vimos, não pode recair sobre um único ombro, ela demanda responsabilidade coletiva e ação coordenada de todos os setores da sociedade. Cada ator tem um papel insubstituível na reversão desse quadro preocupante.
O poder público deve liderar com políticas claras, fiscalização e promoção da ciência, mas a sociedade civil e os indivíduos comuns também precisam fazer a sua parte. Isso começa dentro de casa: famílias de pessoas autistas, em especial, podem se proteger buscando informação em fontes confiáveis, conversando com médicos, psicólogos, professores especializados, antes de acreditar no que “chega no grupo de WhatsApp”. Os pais e mães devem resistir ao canto da sereia das curas milagrosas e lembrar que, se algo parece bom demais para ser verdade, provavelmente não é verdade. Buscar segundos pareceres, questionar, ler e perguntar são atitudes saudáveis. É compreensível que haja desespero em alguns momentos, mas a solução não virá de fórmulas mágicas divulgadas na internet, e sim do apoio profissional qualificado e do amor e compreensão dentro de casa.
A sociedade civil organizada, ONGs, associações de autistas, grupos de pais, tem um poder incrível de mobilização. Foi justamente a parceria entre acadêmicos e a associação Autistas Brasil que gerou o estudo que nos abriu os olhos para a dimensão do problema. Essas entidades podem continuar atuando como cães de guarda da verdade: monitorando as tendências de boatos, pressionando plataformas a agir, exigindo das autoridades respostas e, principalmente, oferecendo informação de qualidade e apoio aos mais perdidos. Uma sociedade civil vigilante impede que o tema desapareça do radar e garante que as vozes das pessoas autistas sejam ouvidas, afinal, nada mais poderoso contra a desinformação do que os próprios autistas tomarem a palavra para dizer “não, não somos fruto de nenhuma conspiração, existimos e resistimos como parte deste mundo”. Nesse sentido, é animador ver especialistas autistas e ativistas se colocando à disposição, produzindo conteúdo informativo nas redes para contrapor as narrativas falsas. Essa autorrepresentação é fundamental para quebrar estereótipos e humanizar o debate.
Os profissionais de educação e saúde também têm grande parcela de responsabilidade. Educadores, desde o ensino básico, podem inserir discussões sobre pensamento crítico, ciência e até condições como o autismo no cotidiano escolar, formando novas gerações menos suscetíveis a crendices. Além disso, podem identificar alunos autistas e trabalhar a inclusão em sala de aula, diminuindo o estranhamento e a desinformação entre colegas, uma criança que cresce convivendo com um colega autista terá muito menos espaço para acreditar em bobagens sobre autismo no futuro, pois terá uma vivência real para contrapor. Profissionais de saúde, por sua vez, precisam ampliar seu papel para além do consultório: hoje, médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e outros são chamados a atuar também como comunicadores. Sempre que diagnosticarem uma criança com TEA, por exemplo, é prudente que alertem a família sobre a existência de falsas curas circulando por aí, orientando-a a não seguir nada sem validação. Muitos médicos já fazem isso em relação a fake news de vacinas; incorporar o mesmo cuidado ao tema do autismo é igualmente importante. Ademais, os conselhos profissionais e sociedades médicas podem emitir notas públicas e materiais informativos para esclarecer tópicos específicos – isso dá respaldo aos profissionais na ponta e gera conteúdo verificável que pode ser distribuído.
A mídia tradicional não está isenta de responsabilidade. Jornais, revistas, televisão e grandes portais de internet devem apurar e noticiar esses fenômenos, como alguns já vêm fazendo ao revelar golpes e farsas. O jornalismo deve continuar a exercer seu papel de fact-checking, desmentindo mitos. Mais do que isso, a mídia pode e deve dar espaço para pautas construtivas sobre autismo: divulgar avanços científicos verdadeiros, mostrar histórias positivas de inclusão, explicar de maneira acessível o que se sabe sobre o TEA. Cada reportagem bem-feita sobre o assunto ajuda a inundar o ecossistema informacional com conteúdo correto, diluindo proporcionalmente o impacto das mentiras. Os veículos de comunicação também precisam ter cuidado para não amplificar inadvertidamente a desinformação, evitando dar palco para charlatães em nome de “polêmica” ou repercutindo teorias malucas sem contexto. A ética jornalística recomenda que se busque sempre ouvir especialistas de verdade quando surgir alguma afirmação extraordinária sobre saúde.
Finalmente, as plataformas digitais e empresas de tecnologia devem assumir que têm uma parcela de responsabilidade social. Já passou o tempo em que podiam se esconder atrás do escudo de serem “apenas ferramentas neutras”. No caso do Telegram – plataforma central neste debate, a expectativa da sociedade é que demonstre comprometimento em coibir atividades ilícitas e perigosas em seus domínios. Transparência, abertura ao diálogo com autoridades e facilitação de mecanismos de denúncia pelos usuários são atitudes mínimas esperadas. A liberdade de expressão não pode servir de álibi para a disseminação desenfreada de conteúdos que ferem direitos humanos e ameaçam a saúde alheia. Assim, espera-se das plataformas um aprimoramento constante de suas políticas e tecnologias de moderação, sem prejuízo ao debate legítimo, mas com firmeza contra abusos.
Em conclusão, reverter a gigantesca onda de desinformação sobre o TEA é um desafio complexo, mas não impossível. Exige, sobretudo, engajamento perseverante e colaboração. Não basta uma ação isolada aqui e ali; é necessário um movimento contínuo, em que cada um, governos, empresas, mídia, escolas, famílias e indivíduos puxe uma parte do fio para desfazer este nó de mentira. A urgência está posta pelos números e casos: se nada for feito, mais pessoas serão enganadas, mais autistas sofrerão consequências e a verdade será cada vez mais sufocada pelo ruído. Por outro lado, se assumirmos coletivamente a responsabilidade de promover a verdade e o respeito, podemos gradativamente diminuir o alcance das falsidades. Podemos salvar vidas e proteger os vulneráveis simplesmente fazendo prevalecer a informação correta. Podemos construir uma cultura em que o autismo seja tratado com a seriedade, a empatia e o conhecimento que merece, sem espaço para charlatanismo ou teorias conspiratórias.
Que esta reflexão sirva de apelo: cada leitor, cada cidadão, tem um papel. Antes de compartilhar aquela mensagem “bombástica” sobre autismo, pare e pense. Busque confirmar. Escute quem entende do assunto. Se for falsa, não passe adiante, pelo contrário, explique a falsidade a quem enviou. Combater a desinformação é um dever de todos nós na era digital. Juntos, podemos fazer com que a voz da ciência e da conscientização supere o grito do obscurantismo, garantindo um futuro mais seguro, inclusivo e informado para as pessoas autistas e para toda a sociedade.
Marcel Carone é jornalista, apresentador de tv, empresário, ativista social comprometido com a inclusão, Embaixador da Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Síndrome de Down do Espírito Santo Vitória Down, Idealizador da “Brigada 21” e do “Pelotão 21”. É diplomado pela ADESG – Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra e Comendador do 38° Batalhão de Infantaria do Exército Brasileiro.
As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM
Receba as principais notícias do dia no seu WhatsApp e fique por dentro de tudo! Basta clicar aqui