Economia das mercês
A sociedade brasileira foi construída a partir de um regime aristocrático trazido de Portugal, com muito pouco espaço para relações mais livres ou liberais
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em 18 de out de 2024, às 11h14
Por João Gualberto
A sociedade brasileira foi construída a partir de um regime aristocrático trazido de Portugal, com muito pouco espaço para relações mais livres ou liberais. Na verdade, constituiu-se uma cultura do poder cheia de vantagens comerciais, com os bons cargos públicos distribuídos entre os fidalgos e sua gente. Uma nobreza da terra que foi se construindo entre nós.
Nunca foi desejo dos nossos primeiros dirigentes ter um ambiente marcado por justiça social ou igualdade. Antes, pelo contrário, o papel das instituições era manter o mundo sempre como estava, sem lugar para mudanças sociais. Todo o processo político e econômico se dava através da distribuição de recompensas materiais e simbólicas entre os principais da sociedade, que aguçava o jogo de poder com graças, benefícios, donativos, favorecimentos e ainda da troca de favores, nos moldes do Antigo Regime.
Olhando esses elementos do ponto de vista histórico, pode ser até que se justificassem naquela época, afinal eram outros tempos e a vida corria de uma outra forma, com uma dinâmica muito diferente da que temos hoje. A questão é que esse passado não nos abandona. Ele se mostra muito presente entre nós e se expressa tanto pelos apadrinhamentos dados a uns poucos quanto pelo excessivo número de cargos que existem em instituições, como as que compõem o poder legislativo, para ficar apenas em um exemplo mais óbvio.
Essa diferença entre os que estão na cúpula das instituições herdeiras desse imaginário histórico e as condições duras da vida das pessoas comuns vem gerando um forte desejo de disruptura social há algumas décadas. Esse desejo foi apropriado, em um primeiro movimento, pelas chamadas esquerdas, que muito trabalharam nos anos finais do século XX para tentar amenizar suas consequências sociais mais graves.
Entretanto, à medida que a esquerda chegou ao poder no Brasil, através do PT, no início do nosso século, foi se institucionalizando no poder e aos poucos deixou de ser a bandeira do desejo de mudanças. As redes sociais, a enorme facilidade de comunicação de nossos tempos e uma certa naturalização da esquerda no poder deram lugar ao surgimento de uma direita que, em nome da liberdade econômica, foi ocupando o lugar da contestação.
Em 2018 o então deputado federal Jair Bolsonaro deslocou de forma fulminante o lugar da narrativa contra esse sistema herdado de nossos antepassados políticos. Construiu então sua liderança e também trouxe para a política brasileira uma nova direita, muitas vezes extremada, mas sempre batendo muito na ordem estabelecida e afastando a esquerda da hegemonia dos espaços de contestação ao sistema.
Essa direita extremada, em muitos pontos, também chegou ao poder e suas lideranças tendem tanto a se desgastar quanto também a se renovar. O tempo, na política, é criação, e assim vai mostrando a viabilidade ou não das propostas e sinalizando desgastes. Caso as condições sociais que produziram essas disrupturas não se modifiquem, outros líderes surgirão, portando a bandeira das demandas não resolvidas.
É o que me parece se passar com o surgimento de novas lideranças na direita brasileira. Em uma sociedade mal resolvida, herdeira da economia das mercês, é fácil entender por que motivo o discurso da ineficiência do estado e da necessidade de um país de empreendedores cola rapidamente no eleitorado. Foi assim que Pablo Marçal, em seu movimento de crescimento no primeiro turno das eleições em São Paulo, nacionalizou sua narrativa e conseguiu tantos adeptos, evidenciando que há uma razão muito forte para essa grande adesão ao seu discurso.
Uma sociedade empreendedora é contrária à lógica social estruturada em favorecimentos, em benefícios, na corrupção e nos desmandos. Ou seja, a narrativa do fim desse ciclo das mercês, que ainda é forte entre nós, faz todo o sentido, caso contrário ela não teria se destacado tanto. O brasileiro mediano, o jovem que rala, o pequeno empreendedor que sofre com as burocracias exageradas dos governos sonha com um país de oportunidades. Exatamente por esse motivo seus ídolos estão entre aqueles que sinalizam para um novo momento no Brasil, finalmente livre dos herdeiros dos fidalgos do Antigo Regime.
** João Gualberto é pesquisador e professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA), e já foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018.
As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM
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