O abismo entre dois mundos
De um lado, instituições privadas que, desde os primeiros anos, preparam seus estudantes para provas externas, olimpíadas do conhecimento, vestibulares seletivos e intercâmbios
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Por Eduardo Machado
Sou professor de Filosofia em escolas públicas e particulares. Todos os dias atravesso, quase sem perceber, uma fronteira invisível entre dois mundos. De um lado, instituições privadas que, desde os primeiros anos, preparam seus estudantes para provas externas, olimpíadas do conhecimento, vestibulares seletivos e intercâmbios. De outro, escolas públicas sobrecarregadas por demandas sociais urgentes e pela expectativa de “formar para o mercado de trabalho” — como se um horizonte profissional imediato bastasse para um projeto de vida pleno.
A contradição é evidente: ambas as redes conduzem seus estudantes ao ENEM, mas partem de pontos de largada completamente diferentes. Uma corre com pista asfaltada, outra com buracos profundos. Cobrar resultados iguais é ignorar a desigualdade estrutural que se instala no cotidiano escolar e, muitas vezes, naturalizá-la.
Pierre Bourdieu já alertava: a escola, longe de neutralizar desigualdades, tende a reproduzi-las. O chamado “capital cultural” — repertório, hábitos de leitura, acesso a bens simbólicos — é oferecido de forma muito mais abundante nas instituições privadas. Quando a escola particular oferece cursos de redação avançada, monitorias de filosofia política, visitas a museus e bibliotecas, ela não apenas ensina conteúdo: ela ensina modos de estar no mundo. Na escola pública, os professores se desdobram para garantir o básico, muitas vezes sem infraestrutura, com turmas lotadas e salários defasados.
Do ponto de vista filosófico, esta situação questiona a própria ideia de justiça. John Rawls defendia que equidade não é tratar todos igualmente, mas compensar desvantagens iniciais para garantir oportunidades reais. O Brasil faz o contrário: aplica avaliações iguais em contextos desiguais. Como exigir redações de alto nível e repertórios filosóficos sofisticados quando a escola pública nem sempre consegue oferecer livros atualizados ou um ambiente silencioso para estudo?
Destinar a escola pública a “formar para o mercado” e a particular para “formar para o vestibular” é um gesto político. Ele delimita destinos: a uns, o pensamento crítico e o acesso ao ensino superior; a outros, a mera empregabilidade. É a negação do ideal de paideia, o projeto grego de formação integral do ser humano, que inspirou a própria noção de educação. Também é a negação da humanitas romana, que via no estudo das artes e da filosofia a base para uma vida pública responsável.
Quando a Filosofia é vista como “extra”, perde-se a sua função emancipadora. Na verdade, é justamente na escola pública que ela é mais necessária: para que os jovens questionem narrativas, identifiquem injustiças e construam novos horizontes de vida. Em minhas turmas da rede pública, percebo uma sede por sentido e debate que desafia os estereótipos. Quando criamos espaço para diálogo, rodas de leitura, análise crítica de filmes e músicas, os alunos respondem com entusiasmo. A experiência mostra que não faltam potencialidades — faltam políticas e condições para que elas floresçam.
Ser crítico não significa apenas denunciar. É preciso propor, experimentar, tensionar o sistema. Na prática, isso significa:
- Projetos interdisciplinares: usar temas de filosofia (justiça, liberdade, ética do cuidado) em parceria com história, arte, sociologia, para ampliar repertório.
- Debates e arenas filosóficas: criar espaços regulares de argumentação e escuta, valorizando as vivências dos alunos como ponto de partida.
- Repertório acessível: trabalhar textos clássicos em versões adaptadas e dialogar com referências culturais dos estudantes — música, cinema, redes sociais — para construir pontes.
- Formação docente contínua: lutar por políticas que garantam tempo e apoio para que professores da rede pública possam atualizar práticas e materiais.
- Avaliação contextualizada: propor que as provas e métricas de desempenho considerem o ponto de partida e não apenas o ponto de chegada.
São ações pequenas no cotidiano, mas que começam a romper a lógica de reprodução e a afirmar um outro horizonte.
A educação, se quiser ser emancipadora, não pode se limitar a preparar para exames ou empregos. Ela precisa preparar para a vida: para pensar, escolher, agir e transformar o mundo. Nesse sentido, públicas e privadas deveriam compartilhar o mesmo horizonte — formar sujeitos críticos e éticos, capazes de construir seu projeto de vida, seja no vestibular, no trabalho, na comunidade ou na política.
Essa é a tarefa urgente de uma filosofia comprometida com a realidade brasileira: não apenas interpretar as desigualdades, mas transformá-las pela palavra, pelo diálogo e pela prática pedagógica.
** Eduardo Machado é filósofo, professor e psicanalista.
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As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM