O anjinho da mola quebrada
Aos poucos, a bela Igreja foi esvaziando como água escorrendo da concha. Sobraram os de sempre: os que gostam de conversar, os que aproveitam para ampliar o relacionamento comunitário
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em 24 de jun de 2025, às 10h56

Por Pe. José Carlos Ferreira da Silva
Depois da missa das nove, fiquei como sempre na porta da Matriz Velha, cumprindo o ritual das despedidas. Apertos de mão, sorrisos familiares, meia dúzia de palavras que valem mais do que parecem. Aos poucos, a bela Igreja foi esvaziando como água escorrendo da concha. Sobraram os de sempre: os que gostam de conversar, os que aproveitam para ampliar o relacionamento comunitário.
Foi quando Beatriz, cinco anos no máximo e uma cara de quem não aceita desaforo, veio marchando até mim.
— Padre, eu dei uma moeda pro anjinho… e ele nem me agradeceu!
Braços cruzados, lábio inferior empinado. Exigia providências imediatas.
O tal “anjinho” é conhecido por aqui. Fica na lateral da Igreja Matriz Velha, com a cabeça presa numa molinha. Quando alguém coloca uma moeda, ele balança a cabeça — um aceno mecânico de gratidão. Nada demais, mas para Beatriz, aquilo era sério. Era como se o céu tivesse falhado.
— Será que ele tá com raiva de mim? Ou ele só é mal-educado mesmo?
Segurei o riso e também o impulso de responder sem pensar. Era hora de ouvir — e aprender — com a teologia da infância. Aquela que não está nos livros, mas que fala com uma pureza que desarma.
Tentei uma explicação simples:
— Talvez ele esteja cansado, ou com a molinha enferrujada. Até os anjinhos precisam de manutenção, não é mesmo?
Ela franziu a testa, avaliando minhas palavras com mais seriedade do que muito adulto. E então lançou o ultimato:
— Mas o senhor promete que vai conversar com ele? Esse anjinho precisa melhorar.
Prometi.
Ali, diante daquela fé que cobra até dos brinquedos sagrados, entendi o recado. Beatriz não queria só que o anjo funcionasse. Queria que o mundo respondesse quando a gente oferece algo com o coração. Que o gesto de dar não ficasse no vazio. Que gentileza fosse levada a sério — mesmo que viesse de uma mola velha.
Naquele domingo, a pequena Beatriz me ensinou que a fé infantil é radical: ela quer sentido. Quer coerência. Quer que o bem seja reconhecido — nem que seja com um simples aceno.
Prometi consertar o anjinho.
Mas, no fundo, acho que quem mais precisava de conserto era eu. Andava falhando nos agradecimentos — esquecendo de acenar, de reconhecer, de retribuir. E foi Beatriz, com sua fé teimosa e direta, quem acabou apertando a minha própria molinha enferrujada.
*** Pe. José Carlos Ferreira da Silva é autor do livro Feridas Invisíveis: a realidade do sofrimento psíquico em padres e pastores decorrente da prática pastoral – Editora Dialética. É Mestre em Ciências da Religião, Jornalista e Psicólogo. Atualmente é Vigário Episcopal para Comunicação da Diocese de Cachoeiro de Itapemirim e Pároco da Paróquia Nosso Senhor dos Passos, bairro Independência, Cachoeiro de Itapemirim.
As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM
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