Quando o cristão comemora a morte, o Evangelho se cala
O recente confronto policial no Rio de Janeiro, que deixou mais de cem mortos, escancarou uma ferida antiga do Brasil: a banalização da vida

Por Dom Luiz Fernando Lisboa
Receba as principais notícias no seu WhatsApp! clique aquiO recente confronto policial no Rio de Janeiro, que deixou mais de cem mortos, escancarou uma ferida antiga do Brasil: a banalização da vida. Diante de tanta violência, muitos se calam. Outros, pior ainda, comemoram. Mas o discípulo de Cristo não pode aplaudir a morte de ninguém. Quando a sociedade celebra o sangue derramado, o Evangelho se cala — e com ele morre um pouco da nossa humanidade.
A Igreja, desde os primeiros séculos, ensina que a vida humana é dom de Deus, e que ninguém tem o direito de destruir o que pertence ao Criador.[1]
A indiferença diante da morte, especialmente quando celebrada, é o sintoma de uma fé adoecida e de uma espiritualidade atrofiada.
A fé cristã não negocia a dignidade. Cada pessoa — inclusive quem errou, quem caiu, quem se perdeu — é imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27). Toda morte é uma perda para a humanidade, não uma vitória.
Jesus não festejou a queda dos pecadores; A fé verdadeira chora as mortes e luta para que não se repitam.
A Igreja não se omite, mas também não se alegra com a destruição do outro. Evangelizar é defender a vida sempre — até o último sopro.[2]
O Papa Leão XIV recordou recentemente que “não se pode ser contra o aborto e, ao mesmo tempo, defender a pena de morte: a coerência evangélica exige uma ética integral da vida”.[3] Essa afirmação ecoa a tradição doutrinária que sempre colocou a vida humana — em qualquer estágio ou condição — como bem inviolável e absoluto.
A justiça é necessária, mas sem misericórdia, ela se torna vingança. O Papa Francisco recorda que “nenhuma paz é duradoura quando se constrói sobre o sangue dos irmãos”[4]. A verdadeira justiça quer restaurar, não eliminar. Defender a vida não é proteger o crime, mas reafirmar que o mal se vence com o bem (Rm 12,21). A segurança pública precisa caminhar junto com a inclusão social, a educação, a escuta e o cuidado.
A paz nasce da justiça, mas só floresce com a misericórdia. A misericórdia não é fraqueza, mas força moral e espiritual capaz de desarmar os corações. Como ensina São João Paulo II: “A justiça sozinha não basta; é preciso que o amor se torne mais forte que o pecado.”[5]
Vivemos uma cultura que confunde justiça com vingança e ordem com violência. Nas redes sociais, as tragédias viram torcida; o sofrimento alheio, espetáculo. Evangelizar hoje é mudar essa lógica. Torna-se cada vez mais necessário evangelizar a cultura dominante para que aconteça a revolução da compaixão. A cada a dia somos chamados, como Igreja, a formar corações compassivos, que saibam sentir antes de julgar, cuidar antes de condenar.
A prevenção — na saúde, na educação, na segurança — é a nova revolução cristã: a revolução de quem cuida antes que o mal aconteça, de quem estende a mão antes que o outro caia. Como já alertava Leão XIII, “a sociedade se desintegra quando o amor deixa de ser a medida das relações humanas”[6]. Evangelizar, portanto, é reintroduzir o amor como critério social e espiritual.
Ser cristão é acreditar que a vida tem sempre a última palavra. Diante da violência e do ódio, o Evangelho nos convida à conversão do olhar: a trocar a indiferença pela solidariedade, a vingança pela compaixão, a comemoração da morte pela promoção da vida. Em Mateus 5,9 lemos: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.”
Em tempos de morte e celebração do ódio, o cristão é chamado a ser voz de ternura. Quando o mundo aplaude a destruição, o Evangelho nos envia a reconstruir. Essa é a verdadeira revolução da fé: cuidar da vida, sempre. Como nos alertou o Papa Francisco: “Quando você comemora a morte de alguém, o primeiro que morreu foi você mesmo.”[7]
Referências
- JOÃO PAULO II, Papa. Evangelium Vitae. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1995. §53.
- CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et Spes. Vaticano, 1965. §27
- LEÃO XIV, Papa. Discurso aos Representantes das Igrejas e Religiões sobre a Ética da Vida. Vaticano, 22 jun. 2025. In: AP News, “Pope Leo XIV says pro-life means rejecting death penalty too”, 23 jun. 2025. Disponível em: https://apnews.com/article/0359c6953303524e5d2387d61e53f474
- FRANCISCO, Papa. Mensagem para o Dia Mundial da Paz. Vaticano, 1 jan. 2020.
- JOÃO PAULO II, Papa. Dives in Misericordia. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1980. §12.
- LEÃO XIII, Papa. Rerum Novarum. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1891. §23.
- FRANCISCO, Papa. Homilia na Missa em Santa Marta. Vaticano, 19 abr. 2016.
** Dom Luiz Fernando Lisboa é arcebispo-bispo da Igreja Católica, na Diocese de Cachoeiro de Itapemirim/ES. O religioso da Congregação da Paixão (Passionista), esteve por quase 20 anos em Pemba, Moçambique.
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