Tamara Lopes e Carmélia M. de Souza
Tamara Lopes Teixeira é autora de uma tese de doutorado em ciências sociais defendida na Universidade Federal do Espírito Santo há poucos meses.

Por João Gualberto
Receba as principais notícias no seu WhatsApp! clique aquiTamara Lopes Teixeira é autora de uma tese de doutorado em ciências sociais defendida na Universidade Federal do Espírito Santo há poucos meses. Arquiteta de formação, migrou para as ciências sociais ao realizar um belíssimo estudo sobre Vitória, sua trajetória histórica e, sobretudo, seu processo de construção como uma cidade de largas avenidas e arquitetura predominantemente eclética, no início do século XX. O trabalho da pesquisadora nos explica como fomos copiar de Viena o modelo fundamental que deu origem a nossa cidade presépio, toda organizada tendo como referência as cidades europeias que se destacam como as metrópoles do século XIX.
O que Tamara descreve não é inédito; antes, pelo contrário, faz parte de uma tradição de produção no campo da história e da arquitetura: contar como nossas cidades nascidas no período colonial e, na maioria dos casos, ainda mais desenvolvidas durante a monarquia, com o enriquecimento que o café trouxe para a nossa região, fizeram a transição para um novo padrão urbano.
O que é inédito no trabalho de Tamara é o lirismo, a forma delicada como trata seu tema. Quebrando a monótona lógica da produção de textos acadêmicos, ela mistura elementos como experiências vividas na construção do trabalho. Nele insere ainda uma espécie de diálogo teatralizado entre a própria pesquisadora e a grande cronista Carmélia Maria de Souza, num colóquio imaginário sobre a experiência de viver em Vitória naqueles sufocantes anos 1960 e 1970. As falas de uma de nossas maiores cronistas certamente foram tiradas de seus muitos escritos.
Nos primeiros anos da república, cidades como o Rio de Janeiro e Campos dos Goytacazes – mais perto de nós – investiram em modernizações enraizadas em nossas elites, no esforço de melhorar as condições de higiene, criando e ampliando serviços de coleta, tratamento e distribuição de água encanada, esgotos, luz elétrica, bondes e outros melhoramentos, que tiveram grande impacto na vida de todos. As velhas ruas da cidade colonial foram, em muitos casos, destruídas e deram lugar a largas avenidas, praças e logradouros públicos erguidos a partir de modelos das grandes cidades europeias.
Na tese Essa Ilha é Uma Delícia: entre o inconsciente urbano da modernidade na cidade de Vitória e as literatices de Carmélia Maria de Souza há um conjunto extenso de questões que conduziram os estudos e pesquisas a tensionar processos históricos, urbanísticos e sociológicos da modernidade capixaba, em diálogo com a psicanálise. O trabalho recorre, portanto, a várias áreas das chamadas ciências humanas para tentar compreender o que se passou aqui e como isso se refletiu nas pessoas.
Diz autora, no resumo que introduz o trabalho: Nesse cruzamento entre teoria social e escuta psicanalítica de fenômenos sociais, observa-se que, em Vitória, a ideia de progresso, preconizada pela modernidade, não se concretizou como horizonte aberto de possibilidades: a sobreposição de experiências sobre expectativa dificultou a emergência de futuros desvinculados das tradições, dos mitos fundadores e do controle das elites regionais, ancorado no autoritarismo afetivo. É nesse contexto que a rua Duque de Caxias aparece, nas crônicas de Carmélia, como expressão do inconsciente urbano a céu aberto e uma metáfora da modernidade capixaba.
Eu já andei refletindo sobre essa geração que Carmélia tão bem expressa. Eram os inconformados com os rumos que o Brasil seguia nos anos 1960 e 1970, que acabava por dar uma sobrevida ao provincianismo de comportamento moral de nossas elites, as quais só pensaram em modernidade em termos de novos aterros e avenidas ainda mais largas.
Milson Henriques, Rubinho Gomes, Aprigio Lyrio, Amilton de Almeida, Serginho Egito fizeram o seu contraponto e deram ao burgo tradicional uma vida que antes deles não havia. Creio que, ao escolher os textos da grande cronista, Tamara fez bem, pois Carmélia é um espelho do seu tempo.
Foi uma época dura, essa de Carmélia. Ao compará-la ao grande cronista João do Rio, Tamara Lopes faz uma menção que acerta em cheio na importância da cronista do povo, como foi chamada. Lembra-nos a todos da forma lírica, poética e desesperada como viveu intensamente sua curta vida, na inflexão entre o provincianismo e a metropolização. Ela nos mostra uma cidade que cresceu desumanizando e sem cuidar da essência de sua alma, à qual somente o tempo dará um novo contorno. Afinal, tempo é criação e nós estamos nos reinventando, assim como Carmélia fez no seu tempo, com grandeza e talento.
*** João Gualberto é pesquisador e professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA), e já foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018.
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