Convite para desembaçar o olhar
Quando chegamos ao mundo, somos puro olhar. Um olhar nu, limpo, livre de julgamentos, de rótulos, de categorias. Um olhar que simplesmente vê
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em 06 de jun de 2025, às 09h38

Por Eduardo Machado
Quando chegamos ao mundo, somos puro olhar. Um olhar nu, limpo, livre de julgamentos, de rótulos, de categorias. Um olhar que simplesmente vê. Vê o que se apresenta, sem comparar, sem medir, sem classificar. O olhar inaugural da existência é um encontro com o real em sua inteireza, sem filtros, sem molduras, sem fronteiras. É um olhar que abraça o mundo, não para possuí-lo, mas para admirá-lo.
Mas o tempo, sempre paciente, começa a moldar nossa visão. Aos poucos, quase sem percebermos, sobre nossos olhos vão se encaixando lentes. Invisíveis, silenciosas, mas imensamente potentes. Lentes que não escolhemos, mas que nos são entregues, passadas de mão em mão, de geração em geração. Lentes que, muitas vezes, confundimos com os próprios olhos, tamanha é sua força e sua permanência. E assim, aquele olhar que um dia foi inteiro, livre e selvagem, começa a ser domesticado.
A primeira lente que recebemos é a da família. É ali, no primeiro núcleo de afetos e de significados, que começamos a aprender a olhar o mundo. A lente da família nos ensina o que é certo e errado, belo e feio, aceitável e condenável. É ela que constrói os primeiros mapas do mundo: quem são os nossos, quem são os outros, o que devemos amar, o que devemos temer, quem devemos evitar. Mas essa lente, embora muitas vezes seja construída no amor, também carrega os riscos do amor cego — aquele que reproduz preconceitos, medos, estigmas e padrões que atravessam gerações sem nunca terem sido questionados.
Logo depois, a cultura se encarrega de reforçar e expandir esse olhar. A cultura oferece as estruturas simbólicas que sustentam nossas crenças, nossos hábitos, nossos valores. É através dela que aprendemos, quase sem perceber, o que é ser “normal” e o que é ser “estranho”. O que é ser “civilizado” e o que é ser “bárbaro”. A lente da cultura tanto conecta quanto separa, tanto oferece sentido quanto aprisiona dentro de fronteiras invisíveis que definem quem pertence e quem é eternamente estrangeiro.
Então chega a lente da escola, que deveria ser o lugar onde aprendemos a questionar todas as outras lentes. Mas, muitas vezes, não é. Muitas vezes, a escola, em vez de libertar, reforça. Reforça padrões, hierarquias, silenciamentos. Ensina mais a se adequar do que a pensar, mais a repetir do que a duvidar. A lente da escola, quando não está limpa, nos entrega fórmulas prontas para enxergar o mundo — e, no processo, faz com que deixemos de enxergar o que não cabe nessas fórmulas.
A lente da religião, por sua vez, tem um poder singular. Ela pode ser fonte de sentido, de transcendência, de amor, de comunidade. Mas, quando se cristaliza em dogma, quando perde o contato com a espiritualidade viva e se transforma em regra, em controle, em exclusão, essa lente deixa de iluminar e começa a obscurecer. Divide o mundo entre puros e impuros, certos e errados, salvos e condenados. É uma lente capaz de gerar tanto compaixão quanto intolerância — e disso a história da humanidade é testemunha.
Vivemos também submersos na lente da mídia. Ela não apenas informa: ela molda. Ela escolhe quem vemos, como vemos, quais histórias são dignas de serem contadas e quais são relegadas ao silêncio. A mídia cria realidades, fabrica narrativas, seleciona dores que merecem comoção e outras que podem ser ignoradas. Seu poder é tão profundo que, muitas vezes, acreditamos estar formando nossa opinião, quando, na verdade, estamos apenas reproduzindo a opinião que ela cuidadosamente nos ofereceu.
E como se não bastasse, há ainda a lente da política. Uma lente que estrutura o mundo através do poder. Que define quem fala, quem cala, quem decide, quem obedece. Que estabelece fronteiras, fabrica inimigos, gera afetos como medo, ódio, esperança ou fanatismo. Quando não estamos atentos, essa lente nos transforma em peças de um jogo que sequer sabemos que estamos jogando — um jogo no qual somos, muitas vezes, movidos mais por medo do que por consciência.
A lente da economia talvez seja uma das mais invisíveis e, paradoxalmente, uma das mais poderosas. Ela nos ensina, desde cedo, que o valor das coisas — e das pessoas — está no que produzem, no que consomem, no que acumulam. Que quem não produz, não consome, não serve. Que quem não é útil, é descartável. Essa lente transforma pessoas em mercadorias, relações em contratos, afetos em transações. E, sem que percebamos, começamos a enxergar o outro não mais como um ser humano, mas como um obstáculo, um competidor, um meio.
E, por fim, chegamos à lente mais recente, mais sutil e talvez mais assustadora de todas: a lente da tecnologia. Vivemos encapsulados em bolhas digitais, alimentadas por algoritmos que selecionam o que vemos, o que ouvimos, com quem falamos, quais verdades nos alcançam e quais ficam do lado de fora. A promessa era de conexão, mas muitas vezes o que recebemos foi isolamento disfarçado de proximidade. Cada feed, cada notificação, cada filtro, cada bolha informacional reforça nossa própria visão de mundo e impede que vejamos qualquer coisa que não se encaixe nela.
O problema, no entanto, não está exatamente nas lentes. Elas são, em alguma medida, necessárias. Afinal, não se pode olhar diretamente para o sol sem algum tipo de proteção. As lentes organizam o mundo, dão sentido ao caos da experiência, ajudam a construir uma narrativa coerente da realidade. Mas o problema começa quando esquecemos que elas são lentes. Quando confundimos o que vemos com o que é. Quando passamos a acreditar que nossa visão é o mundo, e não apenas uma perspectiva dele. Nesse momento, as lentes deixam de ser instrumentos e se tornam prisões.
É aqui que entra a urgência da filosofia. Filosofar é, antes de tudo, um gesto de desconfiança. É perguntar: “E se não for assim?”. É ter a coragem de limpar as lentes, de tirá-las, de encarar o desconforto de não saber, de se abrir ao que não se entende, de acolher o que escapa, o que transborda, o que não cabe nas nossas narrativas. É, como dizia Husserl, suspender os julgamentos — fazer epoché — para encontrar o fenômeno como ele é, e não como imaginamos que seja. É, como nos ensinou Lévinas, encarar o rosto do outro como uma convocação ética, como um infinito que nenhuma lente jamais poderá capturar.
O mundo está adoecido pelo excesso de muros, de fronteiras, de separações. E talvez a saída não esteja em construir novos muros, mas em abrir janelas. Janelas no olhar. Janelas na alma. Janelas que nos permitam ver outra vez, ver de outro jeito, ver sem os filtros que nos ensinaram.
Porque, no fim, o verdadeiro exercício ético não é apenas olhar para o outro, mas permitir que o outro exista — e exista fora das grades do nosso olhar. Talvez o maior ato de amor, de ética e de resistência que possamos praticar seja esse: desembaçar os olhos, desmontar os filtros, derrubar as lentes — e, assim, enxergar. Enxergar de verdade.
** Eduardo Machado é filósofo, professor e psicanalista.
As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM
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