A falácia da meritocracia

A palavra mérito tem um peso curioso: parece uma balança, indica justo, recompensa. Mas se a escutarmos com atenção

Foto: Ilustrativa/Pixabay

Por Eduardo Machado

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A palavra mérito tem um peso curioso: parece uma balança, indica justo, recompensa. Mas se a escutarmos com atenção, ela também carrega o som de portas que se fecham, de vidas que se etiquetam como “bem-sucedidas” ou “culpadas” por razões que pouco têm a ver com esforço pessoal. Quero aqui pensar, sem escudos teóricos ou citações para me esconder, sobre por que a meritocracia — essa crença quase religiosa de que o mundo é um tabuleiro justo onde cada peça conquista seu lugar apenas pelo próprio movimento — é uma ilusão moralmente perigosa, e por que precisamos urgentemente de equidade, que é outra palavra, menos bonita talvez, mas mais humana.

Vivemos em contextos. Não há esforço que nasça puro, isolado. Toda vontade de vencer se alimenta de condições: um lugar seguro para estudar, alguém que lê histórias para uma criança, um prato quente, acesso a cuidados de saúde, uma rede que reivindica e abre chances. Algumas pessoas herdam instrumentos — tempo, rede, um idioma; outras herdam obstáculos — medo, fome, desconfiança institucional. Quando ignoramos essas diferenças e medimos todos pela mesma régua, fingimos que o zero inicial foi igual para todos. Essa é a operação central da falácia: transformar desigualdades de origem em culpa individual.

Há um efeito moral profundo aí. A narrativa meritocrática descobre um modo eficiente de disciplinar: responsabiliza o que deveria ser visto como resultado de um arranjo coletivo. O fracasso deixa de ser chamado de falha de um sistema e passa a ser, com dó e severidade, falha de caráter. Isso gera humilhação silenciosa. Pessoas inteligentes, cuidadosas e incansáveis interiorizam a ideia de que algo está errado nelas quando o que está errado é o mundo que organiza as oportunidades.

Também há uma violência simbólica: o mérito proclamado naturaliza privilégios. Quem recebeu ajuda, educação de qualidade, contatos, tranquilidade econômica, encontra no sucesso uma confirmação cruel: “eu mereci, logo sou superior”. Essa conclusão não só é falsa — omite toda a teia de dependências e sorte que sustentou aquele sucesso — como alimenta desprezo pelos que ficaram para trás. A meritocracia, assim, funciona como verniz moral que torna aceitável a desigualdade.

O que propõe a equidade, então? Não é o inverso da exigência por esforço. É a moderação da acusação moral, a construção de condições reais para que o esforço seja significativo. Equidade é reconhecer que distribuir a mesma coisa para todos quando as linhas de partida são distintas não produz justiça. É dar mais a quem teve menos, não por caridade, mas por reparação — para que escolhas e capacidades possam florescer de modo genuíno. É entender que políticas públicas, escolas bem financiadas, serviços de saúde acessíveis, licença-maternidade decente e um transporte público digno são as condições materiais sem as quais o mérito vira retórica vazia.

Pensemos também no campo do reconhecimento: muitos não só perdem recursos, mas têm suas experiências desqualificadas — vozes silenciadas, conhecimentos desprezados. A justiça exige escuta, validade epistêmica. Não basta remeter tudo a um exame, a um currículo; é preciso reconhecer trajetórias, saberes informais, modos diversos de resistência e coragem.

Há, por fim, uma dimensão ética e pessoal. Desconstruir a fé na meritocracia exige humildade: admitir que boa parte do que somos e conseguimos se apoia em acidentes de nascimento, em generosidades alheias e em estruturas que poderíamos transformar. Exige também coragem política: mobilizar-se para instituir medidas que corrigem disparidades — não para nivelar por baixo, mas para elevar, para instituir igualdade real de oportunidades. Isso pode significar investir em educação pública de qualidade, redes de cuidado, políticas de reparação histórica, e mecanismos que valorizem a diversidade de trajetórias humanas.

Como agir, então, numa vida cotidiana? Primeiro, escutar sem julgar: escutar as histórias que explicam por que alguém não chegou onde “merecia”. Segundo, usar privilégios para abrir portas, não para fechá-las: ensinar, indicar, garantir acesso. Terceiro, lutar por instituições que modifiquem condições — cobrar políticas que distribuam recursos conforme as necessidades, não só segundo o rendimento já alcançado. E sempre lembrar: mérito sem equidade é vaidade social; equidade sem reconhecimento do esforço humano é condescendência.

Por fim, mantenho uma fé simples: o mundo em que cada pessoa importa por si mesma é mais fértil do que o mundo em que comemoramos só os vencedores. Reconhecer a falácia da meritocracia não é predicar o fim do esforço — pelo contrário, é libertá-lo da culpa inútil e colocá-lo no lugar certo: como parte de uma vida que se constrói em comunidade. Se queremos uma sociedade mais justa, precisamos passar da retórica do “quem merece” para a prática humilde e persistente de equipar as vidas para que o mérito, quando existir, seja de fato mérito — nascido de escolha e trabalho, e não apenas de sorte ou privilégio.

** Eduardo Machado é filósofo, professor e psicanalista.

As informações/opiniões aqui escritas são de cunho pessoal e não necessariamente refletem os posicionamentos do AQUINOTICIAS.COM