Evasão escolar: quando a falta é um pedido de cuidado
Há quem descreva a evasão escolar como uma “escolha” do estudante. É mais cômodo assim: transforma a complexidade em moralismo

Por Eduardo Machado
Receba as principais notícias no seu WhatsApp! clique aquiHá quem descreva a evasão escolar como uma “escolha” do estudante. É mais cômodo assim: transforma a complexidade em moralismo e nos poupa de olhar para as camadas de desamparo que antecedem o último passo para fora do portão. Mas a evasão, quase sempre, é o ato final de uma série de pequenas rupturas: a fome que aperta, o ônibus que não vem, a ansiedade que ninguém nomeia, o racismo que corrói silencioso, a avaliação que humilha, o currículo que não conversa com a vida. Antes de o estudante faltar, alguém já faltou a ele. Pense em R., que trabalha à noite para ajudar em casa e dorme durante a primeira aula. Não é desinteresse; é exaustão. Em M., que engravidou aos 16 e só escuta que “perdeu o ano”, como se a escola não pudesse ajustar o tempo e a rota. Em L., aluno trans que encontra no banheiro da escola o espaço mais inseguro do bairro. Em J., com deficiência, sem atendimento adequado. Em A., que perdeu o pai e não tem palavras nem lugar para o luto. A evasão não começa no dia em que param de vir: começa quando a escola deixa de ver.
A evasão é multicausal e territorial. Há razões materiais óbvias — pobreza, insegurança alimentar, falta de transporte, necessidade de trabalho — e razões simbólicas que doem tanto quanto: experiências de humilhação, violência, discriminação, bullying, homofobia, capacitismo, racismo. Some-se a isso um desenho escolar que ainda opera no “um-tamanho-serve-para-todos”: horários rígidos para vidas flexíveis, provas que medem memorização para sujeitos que pedem sentido, conteúdos que ignoram o território e a história de quem aprende. A saúde mental perpassa tudo. Ansiedade, depressão, automutilação, ideação suicida, uso abusivo de substâncias: temas que já estão na escola, quer a escola queira, quer não. Quando o mal-estar aparece como “indisciplina” e recebe apenas punição, reforçamos o circuito do abandono. A evasão, então, vira uma forma de sobreviver ao que deveria cuidar.
A escola não é ambulatório nem serviço social — e não deve ser —, mas é uma comunidade de cuidado. Paulo Freire chamou isso de amorosidade: a rigorosidade do conhecimento, sim, mas sustentada por uma ética da presença. A literatura sobre o cuidado (Gilligan, Noddings) e a tradição psicanalítica lembram: vínculos seguros produzem condição de aprendizado. Não há matemática que se instale em terreno de medo. Cuidar, aqui, não é “mimar” nem dissolver critérios. É desenhar estruturas que sustentem o aprender: acolhida diária com nome e olhar, mediação de conflitos que não naturalize a violência, regras claras com escuta real, avaliação formativa que permita recomeços, percursos personalizados para quem precisa de caminhos alternativos. Cuidar é infraestrutura pedagógica.
Professor não é salvador — e não pode carregar sozinho a dívida histórica do Estado. Mas sua presença cotidiana é a tecnologia social mais potente da escola. O que cabe a ele? Escuta qualificada (perguntar o que acontece antes de punir o que aparece), devolutivas que reconhecem esforço, planejamento inclusivo que antecipa barreiras, alta expectativa sem ingenuidade, articulação com a rede de proteção quando houver sinais de sofrimento psíquico ou violação de direitos. Cabe também a coragem de dizer “não dou conta sozinho” e acionar a equipe: cuidado é trabalho coletivo.
Matrícula universal é conquista; permanência é responsabilidade. Políticas de Estado precisam enfrentar as causas estruturais: renda, transporte escolar digno, alimentação adequada, escola acessível e segura, psicólogos e assistentes sociais na rede, redução do número de estudantes por turma, formação docente continuada com foco em inclusão e antidiscriminação, EJA viva e valorizada, integração com saúde e assistência (CAPS, CRAS/CREAS), programas de busca ativa com equipes formadas e protocolos claros, prevenção à violência nos trajetos e no entorno. Dados importam — mas sem virar máquina de punição. Indicadores devem iluminar o caminho, não envergonhar escolas. Recursos e apoio técnico precisam seguir o diagnóstico: se a escola está em área de alta vulnerabilidade, não pode receber o mesmo que uma escola em situação privilegiada. Equidade é tratar desigualmente quem parte de lugares desiguais.
Fala-se muito em “socioemocional” como se fosse um suplemento, algo que se adiciona à aula para torná-la mais palatável. Não é. O cuidado é condição de possibilidade do conhecimento. Quem está em ameaça não elabora; quem está em vergonha não pergunta; quem está só não sustenta o erro — e sem errar não há aprendizagem. Cuidado, nessa chave, é tecer um ambiente onde o estudante possa existir com sua história. Isso implica reconhecer traumas, construir ritmos, dar sentido ao conteúdo (ligando currículo a projetos de vida e ao território), ofertar redes de apoio (tutorias, plantões de escuta, pactos de convivência), criar ritos de reentrada para quem faltou, garantir confidencialidade e fluxos de encaminhamento responsáveis. É também nomear opressões e proteger quem mais sofre seus efeitos.
Alguns gestos concretos mudam trajetórias: ritual de chegada, com cinco minutos diários de acolhida e checagem de bem-estar; tutor de referência, para que cada estudante tenha um adulto que acompanhe frequência, estudo e vida, e converse com a família quando necessário; reentrada com plano, em que o estudante que faltou por semanas recebe plano de recuperação, prazos realistas, apoio de colegas e encontros marcados, sem “se vira”; avaliação que repara, com oportunidades múltiplas de demonstrar aprendizagem por meio de projetos, oralidade e prática, sem confundir rigor com rigidez; rede ativa, com fluxos claros com saúde e assistência, em que a escola não terceiriza, mas articula e acompanha; currículo vivo, conectado ao território, às culturas juvenis e ao trabalho digno, sem utilitarismo estreito; e política de proteção, com enfrentamento explícito ao racismo, à LGBTfobia, ao capacitismo e à violência de gênero, sem silêncio institucional.
A evasão não é culpa do estudante. É responsabilidade distribuída: família, escola, comunidade, governo. E é, sobretudo, um espelho das nossas escolhas coletivas. Quando normalizamos a fome, a precarização, o transporte indigno, a violência e a solidão, a evasão deixa de ser “desvio” e vira sintoma social. Se quisermos reduzir a evasão, precisamos deslocar a pergunta: não “por que eles saem?”, mas “o que temos feito — ou deixado de fazer — para que queiram ficar?”. Permanência se constrói com sentido, vínculo e justiça. E cuidado não é perfumaria: é política. É investimento. É método. No fim do dia, a escola que retém vidas é aquela que olha e se deixa afetar, que ajusta a rota sem abrir mão do horizonte, que sustenta critérios com humanidade. Uma escola onde o conhecimento não é prova de valor, mas ferramenta de emancipação. Uma escola que, diante de cada ausência, não pergunta “de quem é a culpa?”, mas “o que podemos fazer juntos, hoje, para recomeçar?”.
** Eduardo Machado é filósofo, professor e psicanalista.
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